Evaldo José Guerreiro Filho escreve artigo sobre a atuação de prefeitos e vereadores que, segundo ele, impõem medidas violentas contra pessoas em situação de rua.

A atuação, no sentido de atitude e de teatro, de prefeitos e vereadores, Brasil afora (especialmente em Santa Catarina), impondo medidas de força em face de pessoas em situação de rua, medidas estas denunciadas inclusive pelo Padre Júlio Lancelotti, não são mais do que o reflexos, orquestrados ou não, das ações desmedidas, desumanas e também de força, promovidas por Donald Trump contra imigrantes, nos EUA, e de Netanyahu contra os palestinos, na faixa de Gaza. Esse fenômeno fica evidente, não porque inéditos, visto que realizados há muito tempo, mas porque explícitos e simultâneos, mascarados de legalidade (nas forças de segurança), e disfarçados de um bem cuidar inexistente.
Sem qualquer avaliação científica ou mesmo fática que demonstre a pertinência das ações relatadas nas redes sociais, em que prefeitos/as e outros agentes aparecem “lacrando” pessoas em situação de rua, estas atitudes vêm ocorrendo na totalidade das vezes com características desumanas, que abordam pessoas como se assim não fossem, em nítido processo desumanizador, desfazendo a identidade básica humana proposta na modernidade, e configurada na relação com o outro.
Isso se forja por características estéticas, típicas de processos de higienismo social. Tais pessoas, vistas como diferentes, são escolhidas como inimigos públicos, um delírio coletivo produzido por uma vida sufocante de quem assim as escolhe, decorrentes da exaustão do trabalho, dos compromissos morais e das ausências
produzidas pelo espelho de um mundo inalcançável, desenhado atualmente em parte das redes sociais.
Esse inimigo, confeccionado como “o grande mal”, precisa ser frágil e indefeso para poder ser atacado e para apresentar, com isso, o resultado esperado, ou seja, a vitória daqueles que foram “eleitos e escolhidos” em face dos pecadores. A fragilidade do inimigo é “vendida” como perversidade, como o mal da sociedade, a culpa individual de cada um que se deixa ser fragilizado, e por tanto, acaba em seus próprios erros não tendo sucesso, e, por tanto, não sendo escolhido/eleito.
Essa atuação, verdadeiro teatro de uma nova política, é reproduzida nas redes sociais, buscando criar uma sincronia entre as ações “radicais” de uma extrema direita, que atuam como se estivessem unidas em todo o Planeta, na onipresença das redes sociais. Trata-se de um movimento que pretende avançar com suas pautas, em uma falsa hegemonia produzida no campo virtual, mas que consegue por vezes alterar o senso de
realidade, transformando assim a narrativa em “verdade”, neste caso, materializando a ilusão em realidade.
O fato é que a atuação-atitude frente a estas pessoas em situação de rua é esparsa, sobretudo na sua resolutividade, com nenhuma eficácia real (que não apenas a ideológica), além de bastante controversa (por total desumanidade). Isso em um ambiente como o das redes sociais, impulsionado pelo algoritmo, em casamento perfeito com o medo-ódio vivido nas grandes cidades em face do outro, tende-se a se difundir e pulverizar, ganhando adeptos e fazendo da atuação-teatro, mecanismo pedagógico, demonstrando que as pautas da extrema direita podem avançar, como de fato vem ocorrendo.
Assim, a atuação-teatro impulsiona todos os que se deixam levar por tal perspectiva, na medida do engajamento dos algoritmos, fazendo de seus microcosmos, na realidade ou nas redes, o mesmo, em escala menor, contra seus possíveis “inimigos”, forjando a ideia de que o “fraco” precisa se submeter ao “forte”, os “não eleitos”, portanto pecadores, se submeterem aos “eleitos”. Isto rompe o princípio básico da modernidade, e faz da individualidade advinda do humanismo um sistema em convulsão, produzindo distinções sociais inexistentes, e apagando qualquer possibilidade de subjetividade, que não a adquirida em grupo. Esse fenômeno faz com que se perceba os fracos-pecadores como pessoas que não possuem qualquer direito ou mesmo que não sejam vistos como pessoas. O vício, o álcool, as drogas, a miséria, a infelicidade, etc, são problemas exclusivamente individuais. O humano só passa a existir naqueles que se tornam produto de sucesso, não mais de uma igualdade natural. Isso possibilita que haja a legitimação de diferenças sociais que forjem sociedades escalonadas em castas. O que já existia na seara econômica, institucionalizada em último grau pela uberizacão, avança na seara filosófica, cultural, política e jurídica, fazendo com que, como anunciou Orwell, uns sejam mais iguais do que outros, não mais agora em uma razão apenas de fato, mas também de direito.
Esse tipo de atuação (atitude e teatro), realizados nas redes sociais por prefeitos/as e veredores/as, precisa ser rebatido imediatamente, com a mesma força e intensidade, seja com a institucionalidade (aplicação da lei e punição), seja com levantes populares nas redes e nas ruas. É necessário que essas atuações que ofendem direitos básicos das pessoas em situação de rua, já tão violadas, produzam indignação, para além do nosso sufocamento cotidiano, sob pena de a extrema direita continuar avançando, até o ponto que não haver mais como contê-la.
Evaldo José Guerreiro Filho é advogado.