O fenômeno da judicialização partidária, que vem crescendo no Brasil desde a constituinte de 1988, leva ao enfraquecimento do Legislativo e à corrosão da imagem de imparcialidade do Supremo Tribunal Federal (STF), “além de uma perda democrática no processo decisório brasileiro”. A análise é do advogado Isaac Kofi Medeiros, que disseca o modelo brasileiro no livro “Judicialização partidária – controle de constitucionalidade e conflito político” (Lumen Juris Editora), que será lançado nesta quinta-feira (21), às 18h30, no Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados, em Florianópolis. Na obra, ele defende uma “alteração do sistema de legitimidade ativa de partidos políticos” para redução dos “efeitos negativos” do sistema atual. A mudança, segundo ele, “aumentaria o custo político da judicialização”, inviabilizando questionamentos isolados ao STF “com o objetivo único de obter atenção pública e estimularia contestações de normas que, de tão inconstitucionais, unificariam siglas distintas”.
Os partidos judicializam bastante no Brasil – você fala que “os partidos políticos tornaram-se protagonistas do controle principal de constitucionalidade no STF” -, mas nem sempre foi assim. Por quê isso aconteceu e quais os principais reflexos jurídicos e políticos?
Isaac Kofi Medeiros – Esse processo vem crescendo desde a Constituição de 88, quando partidos passaram a ter direito de ajuizar ações de controle de constitucionalidade no STF. Antes, essa prerrogativa era somente do Procurador-Geral da República, o que foi duramente criticado na Assembleia Constituinte. No entanto, no início dos anos 90, partidos pouco apareciam no Supremo. A partir das reformas estatais de FHC, esse cenário muda com o PT judicializando boa parte da agenda governamental. Quando o PT assume o governo, PSDB e DEM lideram as ações no Supremo e assim sucessivamente, até os dias de hoje, atingindo-se um pico de judicialização durante o governo Bolsonaro, sobretudo na pandemia. É um processo deletério que afeta a todos os partidos que assumem o governo, sem exceção. A consequência é o enfraquecimento do Legislativo e a corrosão da imagem de imparcialidade do STF, além de uma perda democrática no processo decisório brasileiro.
Uma das propostas apresentadas na obra é a adoção de um” sistema de legitimidade ativa de minorias parlamentares” como condição para o ajuizamento de ações. Como funcionaria?
Defendo que esse direito seja de 1/4 dos parlamentares da Câmara ou do Senado. A ação é ajuizada pela oposição unificada, não pelo partido. De tão inconstitucional, a lei aprovada faz com que parlamentares de partidos diferentes se unam. Como numa CPI, eles se reúnem, colhem assinaturas e ao atingirem 1/4, podem propor ação direta no STF. Isso estimula uma judicialização negociada, ao invés de ações aventureiras em busca de holofote ou para de fato anular legislações aprovadas de maneira democrática. Também torna mais difícil o patrocínio de interesse corporativos, quando terceiros procuram partidos para pegar emprestado o seu direito de ação. Com base em dados, demonstro que as coalizões governamentais desde 1988 jamais chegaram a 3/4 do Congresso Nacional, o que significa que a oposição teria tamanho suficiente para atingir a régua de 1/4 e articular ações de controle de constitucionalidade, quando necessário. Cria-se algum nível de dificuldade para não banalizar o controle de constitucionalidade, mas sem inviabilizar o direito de oposição parlamentar.
Você acredita que os partidos passaram a ter legitimidade ativa para judicializar com o objetivo de contrapor ao “monopólio anterior” do procurador geral da República. O desafio seria buscar um equilíbrio?
As atas dos discursos da Assembleia Nacional Constituinte deixam claro que o objetivo do novo sistema de legitimidade ativa era derrubar o monopólio do Procurador-Geral da República, embora não fique claro porque escolheu-se dar legitimidade ativa aos partidos e não às minorias parlamentares, como é comum em outros países. Hoje qualquer partido com representação no Congresso, por menor que seja, pode ajuizar ação direta no STF. Esse modelo não trouxe equilíbrio. Se antes pecava-se pela escassez, agora peca-se pelo excesso. Isso se agravou ainda mais a partir dos anos 2000 com o crescimento do número de partidos no Brasil, sobretudo após a decisão do STF que declarou inconstitucional a cláusula de barreira e estimulou a proliferação de legendas. Na década de 2010, fomos a democracia com a Câmara mais fragmentada do mundo.
Outros países podem servir de inspiração para o Brasil?
A legitimidade ativa de minorias parlamentares é muito comum na Europa. Países como Áustria, Espanha, Portugal, Alemanha e Romênia a utilizam. A Áustria é o berço histórico e intelectual do sistema concentrado de constitucionalidade, do qual importamos diversos modelos jurídico-constitucionais, e utiliza uma régua ainda mais criteriosa de 1/3 dos parlamentares. Não está imune à críticas, mas é um sistema constitucional que parece ir melhor do que o nosso em termos de estabilidade.