Cíntia Domit Bittar escreve artigo sobre como a gestão de Florianópolis vem negligenciando o potencial econômico da indústria audiovisual, que poderia ter gerado até R$ 400 milhões para a cidade, destacando a falta de investimentos e fomento ao setor sob a administração atual.
A gestão Topázio deixou de movimentar R$ 400 milhões na economia de Florianópolis? É uma pergunta que você mesmo poderá responder ao final desta primeira parte de minha exposição sobre as consequências de se desprezar, em nossa cidade, uma das principais indústrias do planeta, que é a indústria do audiovisual. Uma indústria diversa, dinâmica e robusta, que compreende a formação e pesquisa, produção, difusão e distribuição, exibição e preservação. E já que, infelizmente, falar de valorizar a produção cultural não basta, vou utilizar a linguagem do dinheiro. Vem comigo que, como falam influencers das redes sociais, “o final vai te surpreender”.
Nacionalmente, essa indústria se equipara e até ultrapassa outras tradicionais como a têxtil, farmacêutica, automobilística e o setor do turismo sob muitos aspectos, que vão de geração de renda, receita e massa salarial. É tão estratégica que temos uma agência nacional própria, a Ancine (Agência Nacional do Audiovisual) – assim como há a Anvisa, Anac, Aneel… -, e seus dados posicionam o setor audiovisual na quinta posição em importância na economia brasileira.
A quantidade de empregos diretos e indiretos gerados no país equivale à população inteira aqui da capital catarinense. E se tem catarinense que duvida que audiovisual seja uma indústria forte, é importante saber que temos um Sindicato da Indústria próprio, o Santacine, filiado à FIESC. Aliás, nosso estado é o único do Brasil com dois sindicatos próprios e exclusivos do setor, patronal (Santacine) e laboral (Sintracine), uma característica singular para a profissionalização do mercado e atração de negócios, caso houvesse vontade política.
Temos ainda a Associação Cinemateca Catarinense, com quase quatro décadas de atuação, ao menos quinze cursos superiores no estado, uma Frente Parlamentar própria na ALESC, criada pelo Deputado estadual Marquito. Mas aqui vou focar na cidade e, embora tenhamos cursos, diversos cineclubes, salas de exibição e festivais de destaque no país, como a Mostra de Cinema Infantil, o FAM e a Transforma, vou de forma bem específica abordar o fomento à produção.
Para responder a pergunta que abre o texto, vou adotar como sendo dois anos o tempo de gestão do prefeito Topázio, que é o que ele considera, embora tenha sido vice de Gean e, claro, feito parte daquela gestão. Preciso que guardem os dados apresentados em 2022, no Fórum da Spcine (Empresa de Cinema e Audiovisual de São Paulo, iniciativa de economia mista da prefeitura): a cada R$ 1 investido pela prefeitura de São Paulo na produção de um filme ou série na cidade, são gerados mais de R$ 20 para a economia local. O estudo, realizado pela FIPE (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas), revela ainda que no custo total de produção de uma obra audiovisual, apenas 9,8% são de insumos desse setor e 90,2% são de insumos de outros sessenta e sete setores econômicos, como agricultura, turismo e transportes, por exemplo.
Agora, vamos lá:
O Funcine – Fundo Municipal de Cinema de Florianópolis é o mais antigo do país nesses moldes e completou trinta e cinco anos em 2024. Chegou a inspirar o modelo do nacional FSA (Fundo Setorial do Audiovisual), que tem uma receita de aproximadamente R$ 1 bilhão anual e é alimentado por contribuição do próprio setor através da Condecine. Por muitos anos, o Funcine possuiu um edital anual regular, o Prêmio Armando Carreirão, que revelou muitos talentos do cinema local. Eu quem o diga, pois foi através deste edital que realizei meu primeiro curta-metragem em 2010 e felizmente pude contribuir para o reposicionamento do cinema catarinense no país, pois esse filme fez uma carreira muito forte, arrebatando mais de cinquenta prêmios importantes, como Melhor Curta no Festival do Rio, o mais relevante do país internacionalmente. Porém, a situação do fundo e do edital piorou muito.
Falar sobre o Funcine renderia um artigo exclusivo, pois sua criação por lei se deu em 1989, quando Esperidião Amin era prefeito. Houve apenas uma atualização da lei em 2003 e nunca mais foi revisada, embora haja demanda e projeto de lei de 2022 para isso, de autoria de Leonel Camasão, à época vereador suplente. E pelo menos desde a criação do Fórum Setorial Audiovisual Florianópolis, em 2013, que o setor almeja a criação da FloripaCine, inspirada na Spcine, criada naquele ano, e também na RioFilme, criada em 1992. Fica para a próxima, pois para responder a pergunta que fiz, vou mais uma vez especificar e me ater apenas ao edital de fomento do fundo.
É fato que desde 2015, tivemos apenas uma edição do edital lançada e paga, a de 2020. Para aquele ano, o setor organizado conseguiu que a Câmara de Vereadores aprovasse R$ 2,7 milhões para o Funcine no orçamento anual do município, um valor ainda muito aquém da demanda e potencial do setor em Florianópolis. Mas o então prefeito Gean (e vice Topázio) cortaram mais da metade desse valor antes mesmo de a pandemia se tornar uma emergência – falo isso antes que alguém use a Covid como desculpa.
Pois, mesmo aprovando esse valor histórico na Câmara, a gestão Gean-Topázio lançou o edital do Funcine com apenas R$ 900 mil e nenhum outro mecanismo de fomento emergencial ao setor para mitigar os efeitos da pandemia, como fizeram outros municípios. Além desse edital de 2020, só tivemos recursos federais operacionalizados pela Fundação de Cultura Franklin Cascaes, com a emergencial Lei Aldir Blanc e depois a Lei Paulo Gustavo. Ou seja, nada de recurso municipal e ainda em desacordo com muitas reivindicações da classe para a utilização dos recursos. E o valor remanescente do ano passado, da Paulo Gustavo, será injetado somente neste fim de ano no setor, pois ainda não foi executado na totalidade.
Vale frisar que, entre 2014 e 2018, Florianópolis perdeu oportunidades históricas de atrair dinheiro federal, pois nessa época estava ativa a Chamada Pública de Coinvestimento Regional do FSA/ANCINE, que suplementava editais regionais em até 5x o valor aportado pelo ente regional. Significa que se o ente regional colocasse R$ 1 milhão, o governo federal colocaria até mais R$ 5 milhões. E as capitais também podiam participar, não apenas estados. Porém o único edital do Funcine lançado entre esses anos foi um na gestão Cesar Souza Jr, em 2014, e sem o arranjo federal.
Mas e o Topázio? A verdade é que nunca recebeu as entidades do setor para falar da indústria do audiovisual e nunca lançou um edital sequer (embora tenha prometido, com foto e tudo), além de ainda não ter repassado os recursos do edital de 2021 para os projetos contemplados.
Sobre esse edital prometido que nunca saiu, houve uma espécie de anúncio feito pelo ex Secretário da pasta, que inclusive teve sérios problemas com a justiça e chegou a ser preso. Nas redes sociais, esse sujeito fez um vídeo infame, fantasiado de cineasta com um cachecol e cadeirinha de diretor, dizendo que ia lançar um edital de R$ 1 milhão. E é uma afronta uma capital como Florianópolis ter orgulho de lançar um edital com esse valor, que não paga hoje um terço do custo de um longa-metragem de baixo orçamento.
Mas vamos às contas e à conclusão:
Um valor mínimo para um edital de fomento ao audiovisual, pilar principal da economia criativa, numa cidade que se diz capital da inovação, não pode ser menor de R$ 10 milhões para fomentar desenvolvimento, produção e finalização de filmes e séries; ações de formação, cineclubes, comercialização e distribuição, difusão e festivais, pesquisa e publicações, ações de preservação. E ainda é pouco! Para um parâmetro, a cidade do Rio de Janeiro está com edital na RioFilme de R$ 34 milhões.
Vamos supor que a gestão Topázio fosse razoável e tivesse realizado, nesses seus dois anos, investimento na produção audiovisual de R$ 20 milhões totais. De acordo com os dados acima do Fórum Spcine, ele teria injetado R$ 400 milhões na economia local, certo? Pois a cada R$ 1 investido voltam R$ 20. Lembrando que esse dinheiro primário de R$ 20 milhões, sem contar a multiplicação ao penetrar na economia da cidade, já movimentaria outros setores, pois em relação aos insumos, apenas aprox 10% fica com o audiovisual e o restante vai para outros setores, como hotelaria, transporte, restaurantes.
É uma hipótese? É. Mas é uma hipótese que nos deixa uma certeza: o desprezo à indústria audiovisual, além de deixar de produzir cultura e alavancar o turismo, custa muito caro à cidade. Obrigada por ler até aqui. Nos vemos no próximo artigo.
Cíntia Domit Bittar é cineasta, sócia da Novelo Filmes. Titular no Conselho Superior do Cinema (MinC). VP no Santacine – Sindicato da Indústria do Audiovisual de SC.