Quando a saúde da mulher é comércio e não cuidado

A campanha “Outubro Rosa” é talvez uma das mais conhecidas entre as campanhas de saúde desenvolvidas em todo o mundo. Afinal, no Dia da Mulher, você deve estar se perguntando: “Qual o sentido de falarmos disso em pleno mês de março?”

Dia da mulher e uma reflexão sobre saúde feminina.

O sentido é simples, somos diariamente enganadas por pequenos, ou grandes, comércios que taxam de cuidado o que pode ser interpretado como comércio e falta de autocontrole na mão de nós, mulheres.

Em 2016 a SBMF (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade), publicou um artigo exatamente sobre isso. Segundo o próprio artigo, a campanha surgiu nos Estados Unidos e rapidamente chegou em diversos países, mesmo com sentidos distorcidos.

Há uma crescente discussão sobre a real eficácia dessa estratégia e os interesses comerciais que a cercam. Embora o câncer de mama seja uma preocupação legítima de saúde pública, é essencial analisar criticamente o impacto das ações promovidas durante o mês de outubro.

O rastreamento populacional do câncer de mama, por meio da mamografia, é uma prática recomendada em diversos países, incluindo o Brasil. No entanto, estudos apontam que a redução da mortalidade associada a essa estratégia é limitada e os riscos podem ser consideráveis.

Só para se ter uma ideia, para que uma única vida seja salva, são necessárias cerca de 2.000 mamografias em mulheres dentro do grupo recomendado. Além disso, a taxa de mortalidade por câncer de mama no Brasil não apresenta redução significativa ao longo dos anos, sugerindo que a campanha, na forma em que é promovida, pode não estar atingindo seus objetivos esperados.

Outro problema grave é o sobrediagnóstico, que acontece quando um exame detecta um tumor que nunca evoluiria para um câncer grave ou letal. Isso significa que muitas mulheres recebem um diagnóstico assustador e acabam passando por tratamentos que, na realidade, não seriam necessários. Como consequência, elas podem enfrentar cirurgias, quimioterapias e até a retirada da mama (mastectomia) sem que isso realmente trouxesse benefícios para a sua saúde. Além do impacto físico, há também o emocional: receber um diagnóstico de câncer pode gerar medo, ansiedade e mudanças drásticas na vida da paciente.

Mas calma, isto não é uma opinião, é pesquisa científica. Estudos indicam que, para cada vida salva pela mamografia, cerca de 200 mulheres sofrem consequências negativas devido ao sobrediagnóstico, seja pelos tratamentos desnecessários ou pelos efeitos psicológicos dessa situação. Encontre esta explicação completa aqui.

Segundo a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), o Outubro Rosa se tornou mais uma estratégia de marketing do que uma campanha eficaz de saúde pública. Muitas empresas associam sua marca ao movimento, mas doam apenas uma parte mínima dos lucros, quando o fazem, enquanto utilizam a causa para promover seus produtos. Em alguns casos, essas mesmas empresas fabricam substâncias ligadas ao desenvolvimento do câncer de mama, evidenciando a contradição da campanha.

Mas o que então seria uma prevenção ao câncer de mama?

O INCA (Instituo Nacional do Câncer) explica que a verdadeira prevenção do câncer de mama vai além da mamografia e envolve hábitos saudáveis e acompanhamento médico adequado. Manter uma alimentação equilibrada, praticar exercícios físicos, evitar álcool e cigarro, além de controlar o peso, são fatores essenciais para reduzir o risco. Amamentar, evitar terapias hormonais desnecessárias e minimizar a exposição a substâncias tóxicas também ajudam. O autoconhecimento do corpo e consultas regulares garantem um diagnóstico precoce quando necessário. Mais do que exames, a prevenção real está no dia a dia e nas escolhas que fazemos para nossa saúde.

Preventivo a torto e a direito

Você, mulher, deve ter ouvido falar que preventivo é necessário sempre. Mas será mesmo? Segundo as Diretrizes para o Rastreamento do Câncer do Colo do Útero do Instituto Nacional de Câncer (INCA), nem todas as mulheres precisam realizar o exame preventivo de forma indiscriminada. O rastreamento deve começar aos 25 anos para mulheres que já iniciaram a vida sexual e ser repetido a cada três anos, caso os dois primeiros exames anuais apresentem resultados normais. O exame pode ser interrompido aos 64 anos, desde que a mulher tenha realizado dois exames negativos nos últimos cinco anos.

Estudos mostram a idade correta para se fazer preventivo. Foto: Unsplash/Divulgação.

Estudos apontam que mulheres com menos de 25 anos apresentam um risco muito baixo de desenvolver câncer invasivo, e que muitas lesões detectadas nessa idade podem regredir espontaneamente, evitando intervenções desnecessárias. Além disso, o rastreamento não é recomendado para mulheres que nunca tiveram relações sexuais, pois o risco de desenvolver a doença é muito baixo. Essas recomendações visam equilibrar os benefícios do rastreamento com a redução de impactos negativos causados por diagnósticos excessivos e tratamentos desnecessários.

A falta de corpos femininos em pesquisas

Segundo o médico Dr. Manuel Anxo Blanco, em entrevista para a Cadena SER, a participação de mulheres em ensaios clínicos historicamente esteve abaixo de 30%, e apenas 1% da pesquisa médica é direcionada a patologias específicas das mulheres, aumentando para 4% quando se inclui a oncologia. Essa sub-representação feminina nos estudos clínicos tem impacto direto na qualidade dos diagnósticos e tratamentos oferecidos às mulheres, resultando em atrasos no reconhecimento de doenças e em terapias que não consideram as particularidades do organismo feminino.

Essa tendência de exclusão das mulheres em pesquisas médicas já foi amplamente documentada. Por exemplo, um estudo da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp revelou que, em ensaios clínicos sobre tratamentos cardiovasculares, apenas 27% dos participantes eram mulheres. Além disso, uma análise publicada pela Revista Galileu mostrou que, entre 2000 e 2019, nos testes para novas medicações cardiometabólicas, apenas 36% dos voluntários eram do sexo feminino. Esse desequilíbrio pode levar a erros no desenvolvimento de medicamentos, uma vez que o metabolismo feminino pode reagir de maneira diferente às substâncias testadas, influenciando a eficácia e os efeitos colaterais.

Esses dados reforçam a necessidade urgente de aumentar a representatividade feminina nas pesquisas médicas para garantir diagnósticos mais precisos e tratamentos mais eficazes para as mulheres.



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