
A chegada da Páscoa remete Santa Catarina a um dos episódios mais emblemáticos da sua história. Há exatos 110 anos, o Estado vivia a Páscoa Sangrenta do Contestado. Era o ano de 1915 e depois de uma Quinta e Sexta-Feira Santa de intensos bombardeios, não houve trégua no Sábado de Aleluia. Tampouco no domingo, quando forças oficiais adentraram no reduto de Santa Maria, interior de Timbó Grande, no Planalto Norte. Casas e capelas foram incendiadas. A Páscoa de 1915 ficaria conhecida como a Páscoa do Genocídio, tal a quantidade de caboclos mortos. Militares também foram abatidos.
Natural de Florianópolis, Eleutério Nicolau da Conceição foi professor na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Trabalhou no Departamento de Física até que, com mais tempo trazido pela aposentadoria, retomou o antigo interesse em unir desenho e história: tem publicado episódios da história de Santa Catarina ilustrados em quadrinhos. Além da Guerra do Contestado, ele usa o dom de desenhar para recriar em quadrinhos a Páscoa Sangrenta. Eleutério abriu seu ateliê para uma entrevista e disponibilizou seu valioso acervo para ilustrar nossa reportagem.

“Para o cerco em Santa Maria, foi montada uma estratégia com quatro linhas: Sul, Norte, Leste e Oeste, utilizando milhares de soldados, 300 vaqueanos e armamento pesado”, relata o professor aposentado.

O que chama a atenção é a disparidade das armas utilizadas nos combates. Imagens da época, como do fotógrafo sueco Claro Gustavo Jansson e que inspiram os quadrinhos de Eleutério, mostram a diferença.

Apesar do poderio de guerra, as forças oficiais enfrentaram muitas dificuldades: desconheciam a região, a mata antes era muito fechada, o sobe e desce dos vales, o frio rigoroso. Além disso, diz o professor Eleutério, houve muita resistência por parte dos caboclos que, após intensos bombardeios, retomavam suas rotinas de fé no monge João Maria e seu exército celestial como se nada tivesse acontecido. Provavelmente por terem se protegido em esconderijos que faziam parte da cultura cabocla.

Por causa dessa surpreendente resistência, a estratégia militar era metralhar, avançar, recuar. Ocorre que, mesmo recuando um pouco, as tropas sempre faziam um avanço considerável. Um dos objetivos era a destruição do local com incêndios.

Os dias que antecederam a Páscoa (Quinta-feira Santa, Sexta-feira Santa e Sábado de Aleluia) foram com bombardeios intensos, até que, no domingo, as tropas adentraram Santa Maria. Para o geógrafo, escritor e professor Nilson César Fraga, do Departamento de Geociências da Universidade Estadual de Londrina, no Paraná, foi uma repressão desigual:

– Consideramos que não vale a pena ficar calculando o genocídio, porque a “queima geral” contida em relatórios não permite saber quantos foram calcinados pelo fogo, no interior dos casebres e das mais de uma dezena de igrejas incendiadas ao longo do cerco que causou pânico – esclarece o professor.

Telegrama militar: “Arrasei perto de 5 mil casas e 10 igrejas”
Foi com um telegrama enviado aos governos dos Estados de Santa Catarina e do Paraná e ao governo federal, que o Exército avisou que a chamada ‘paz’ havia sido restabelecida na região: tudo havia sido queimado, planalto e vales estavam silenciados.
Setembrino de Carvalho, o capitão responsável pelo ataque detalha o desfecho: “Tomei e arrasei 13 redutos com enormes sacrifícios do meu heroico destacamento. Matamos em combate próximo de 600 jagunços, não contando o grande número de feridos. Arrasei perto de 5 mil casas e 10 igrejas”.
Ruínas e silêncio no vale da morte
Visitar as ruínas do antigo reduto não é aprazível. A imaginação nos faz pensar que estamos sobre corpos. Mas ajuda a compreender o horror que foram aqueles dias. Chega-se no local depois de percorrer uns 12 quilômetros, para quem parte do centro de Timbó Grande, pela estrada de chão da localidade de Vaca Branca, com sobe e desce de serra, atravessando pontes e observando uma paisagem que oscila entre pinus e o que restou da mata original. No Vale Sagrado de Santa Maria, um monumento em concreto tem placas que remetem ao fim da guerra. Numa delas está escrito:
“ESTE LOCAL, EMOLDURADO PELA NATUREZA, SERVIU DE CENÁRIO PARA A BATALHA FINAL DA GUERRA SERTANEJA DO CONTESTADO. AQUI TERMINOU A MAIOR LUTA DOS BRASILEIROS PELA PRÓPRIA TERRA. EM 4 DE ABRIL DE 1915, AS TROPAS DO EXÉRCITO LIDERADAS PELO CAPITÃO TERTULIANO POTYGUARA E PELO CORONEL RAUL D’ESTILLAC LEAL, EMPREENDERAM UM GRANDE CERCO QUE BATIZOU O LUGAR DE VALE DA MORTE. MAIS DE MIL SERTANEJOS FORAM MORTOS, ENTRE ELES MULHERES E CRIANÇAS; CINCO MIL CASAS E 11 IGREJAS FORAM DESTRUÍDAS.”
Faz-se silêncio.

Alunos preparam espetáculo para que episódio não seja apagado da memória
Não deixar com que a Páscoa Sangrenta de 1915 seja apagada das memórias é um dos compromissos da comunidade da Escola Estadual Básica Trinta de Outubro, em Lebon Régis. Estudantes e professores estão mobilizados para a realização de um evento e o figurino preparado. A produção é uma parceria com a Associação Cultural Coração do Contestado e o espetáculo está previsto para a XI Semana do Contestado, em outubro, evento anual realizado na cidade para um público de cerca de 2 mil pessoas.

A apresentação prevê uma cidade cenográfica e o espetáculo cênico com luz, imagens, som e danças coreografadas. A ideia é apresentar uma estrutura que lembra espetáculos como a Tomada de Laguna, que remete à história de Anita e Giuseppe Garibaldi, e a República Juliana, encenação multimídia conhecida em Santa Catarina.
O conflito
Período: 1912-1916
Onde: divisa entre os Estados de Santa Catarina e do Paraná.
Motivo do nome: o nome vem do fato de que a região tinha os limites contestados pelos Estados.
Causas: concentração fundiária, coronelismo, messianismo (surgimento dos ‘monges’), ausência do Estado, abandono social, construção de uma estrada de ferro, envio de tropas.
Presença dos militares e polícias dos dois Estados: 7 mil soldados.
Conflito: estima-se em 10 mil mortos.
Paz: em 20 de outubro de 1916 foi feita a assinatura do Acordo para Demarcação de Limites Paraná-Santa Catarina.
Bastidores da reportagem: Ângela Bastos e o Contestado
Ficha técnica:
Textos e entrevistas: Ângela Bastos
Ilustrações: Eleutério Nicolau da Conceição
Edição: Upiara Boschi
Artes: Antonio Machado
Edição de vídeo: Mateus Benhur