Artigo de Gedeão Locks, economista.
Reza a lenda que o prefeito se recolhe todas as noites a um sítio no Norte da Ilha, um oásis de paz e sossego, onde pode dormir tranquilamente após meditar sobre os problemas da cidade. De lá, é provável que não ouça o ruído intermitente que domina o Centro Histórico (histórico porque foi onde começou a cidade, e não “Centro Leste”, como insiste o marketing imobiliário).

Quem mora no Centro Histórico gostaria da mesma paz sem precisar mudar de endereço. A cacofonia por aqui começa cedo: numa madrugada típica, ouve-se a saída barulhenta dos bares; em seguida vêm as rodas de capoeira e os desfiles Hare Krishna, entrecortados por brigas entre pessoas em situação de rua e o músico espontâneo com sua caixa de som. Pela tarde, há passeata de greve com carros de som e discursos exaltados. E, quando tudo indica que o dia acabou, entra em cena ele, o campeão de incômodo, o terror do Centro Histórico da capital: o assoprador de folhas. O aparelho ataca nos horários mais improváveis: às sete de uma terça-feira ou às onze e meia de um domingo, minutos depois de um bloco de fanfarra terminar seu ensaio.
É clara a necessidade de manter o entorno da Praça XV limpo e excelente o trabalho feito pela COMCAP, mas isso não exige despejar 90 decibéis nos ouvidos já tão maltratados dos moradores do bairro. Para efeito de comparação, 90 decibéis é o equivalente ao ruído produzido por um aspirador de pó industrial. A OMS diz que, para um sono normal, é necessário estar em ambiente com menos de 40 dB. Não se trata, portanto, de preciosismo de quem prefere ler em silêncio. Estudos médicos mostram que a exposição crônica ao ruído eleva o risco cardiovascular, perturba o sono e prejudica a cognição — sobretudo em crianças. A Escola de Saúde Pública de Harvard considera o barulho o segundo maior fator ambiental de doença, perdendo apenas para a poluição do ar. Por isso, mais de 25 cidades dos EUA já baniram sopradores de folhas, e até revistas de jardinagem publicam etiqueta de sopradores para evitar brigas entre vizinhos. A poluição sonora é alvo de políticas públicas também na França, onde há radares anti-ruído que multam veículos que ultrapassam um limite de emissão de barulho.
Perturbação do sossego não é figura de linguagem: Santa Catarina aprovou a Lei 18.346/2022 para embasar ações contra ruídos excessivos, e o MP lançou a campanha “Silêncio é Saúde”, também nessa direção. O silêncio não é privilégio; é direito básico. Há saídas simples: restringir horários do soprador, usar varrição manual (que não emite fumaça de benzeno), definir limites de decibéis para ensaios, rodas, templos e bares com fiscalização de verdade.
Sim, Florianópolis tem problemas maiores, mas este aqui se resolve com regulamento (que já existe) e fiscalização (que ainda é incipiente). Na semana passada, saiu a notícia de que a Prefeitura de Florianópolis concederá isenção de IPTU por três anos a lojas de até 180 m² que se instalarem na região leste do Centro Histórico. O ideal seria que os funcionários das empresas que se pretende trazer para cá também pudessem (e quisessem) morar na região. Mas trabalhadores precisam de descanso, e já conto cinco vizinhos que abandonaram o Centro Histórico somente neste ano devido ao barulho. Levar a sério um disque-denúncia 24h e aplicar multas custaria pouco, melhoraria a qualidade de vida, manteria moradores, atrairia os trabalhadores das novas firmas e valorizaria imóveis. Consegui terminar estas linhas porque os sopradores estavam trocando de turno… opa, recomeçaram.
