Artigo de Adriano Tavares da Silva, advogado, Mestre em Ciências Jurídicas (UAL-Lisboa). Especialista em Direito Público (CESUSC) e em Direito Eleitoral (IDP). Diretor de Relacionamento com a Justiça Estadual de Santa Catarina da OAB/SC. Vice-Presidente do Conselho do IASC.

Na estrutura constitucional brasileira, os freios e contrapesos entre os Poderes da República se revelam como cláusula essencial para o equilíbrio democrático. Contudo, quando as engrenagens institucionais que deveriam assegurar esse equilíbrio começam a se assimetrizar, torna-se legítimo e necessário o debate público sobre eventuais correções de rota.
É o caso do foro por prerrogativa de função conferido a deputados federais e senadores, que hoje são processados e julgados originariamente pelo Supremo Tribunal Federal nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, conforme determina o art. 102, I, “b”, da Constituição Federal.
Com efeito, o tema volta com força ao centro do debate político neste início de setembro de 2025, com a Câmara dos Deputados analisando propostas antagônicas. De um lado, uma PEC busca ampliar a blindagem, restringindo prisões em flagrante de parlamentares; de outro, uma proposta mais radical mira a extinção pura e simples do foro por prerrogativa de função. Neste cenário polarizado, a defesa do deslocamento da competência para o STJ apresenta-se como uma terceira via, uma alternativa de equilíbrio republicano que evita tanto a excessiva imunidade quanto a extinção abrupta de uma garantia institucional.
A previsão, que remonta ao texto originário de 1988, nasceu sob o signo da proteção institucional: garantir a independência dos parlamentares perante juízes de instâncias inferiores, evitando perseguições políticas ou interferências indevidas. O problema é que, como alerta Richard Weaver, as ideias têm consequências.
Atualmente, passados mais de trinta anos, vemos as consequências da escolha constitucional: o instituto tem se revelado um verdadeiro desequilíbrio funcional, pois transforma a Suprema Corte em tribunal criminal de primeira instância para centenas de autoridades, inclusive políticos com mandato eletivo.
Um elemento adicional ao “desconcerto do mundo” camoniano é a assunção política cada vez maior do STF dada a polarização política recente e a radicalização cada vez maior de ambos os pólos e temos como resultado o excesso de competências, politização do debate judicial. O STF, que deveria concentrar seus esforços em questões constitucionais centrais, vê-se desviado para tarefas instrutórias e procedimentais, incompatíveis com a natureza de uma corte constitucional.
Esse cenário leva à seguinte pergunta: não seria o caso de deslocar o julgamento penal originário dos membros do Congresso Nacional para o Superior Tribunal de Justiça?
Ademais, é crucial destacar que o Superior Tribunal de Justiça não apenas possui a estrutura técnica, mas também a tradição jurisprudencial para exercer essa função. Mesmo após o posicionamento do STF na AP 937, que restringiu o foro às infrações nexus com o mandato, o STJ tem reafirmado consistentemente a validade da prerrogativa de função para outras autoridades de elevada estirpe, como desembargadores, fundamentando-a na indispensável proteção da imparcialidade e da independência institucionais. Este precedente interno robusto demonstra que o STJ está perfeitamente apto a julgar com rigor técnico e isenção os casos envolvendo parlamentares, aplicando o mesmo entendimento restritivo já consolidado pelo Supremo.
O STJ é, por sua natureza, uma corte de julgamento infraconstitucional, com perfil técnico consolidado, corpo colegiado numeroso e já possui competência originária para julgar outras altas autoridades da República, como governadores e desembargadores. Dessa maneira, até com base no princípio da deferência, amplamente debatido recentemente, surgem razões técnicas, jurídicas e políticas que justificariam esse deslocamento de competência.
Em outras palavras: o STJ possui arcabouço jurídico e institucional apto a absorver essa competência, com a vantagem de estar mais distante da arena política e ideológica que hoje tanto pressiona o STF.
Adicionalmente, a concentração de competência penal no STF para julgar parlamentares reproduz o alerta de Hans-Hermann Hoppe sobre os vícios estruturais da concentração de poder, gerando degradação institucional. Com efeito, quando uma Corte Suprema assume funções de instância instrutória e julgadora de centenas de autoridades, compromete sua missão constitucional e evidencia os efeitos de um sistema onde o aparato estatal, longe de servir ao interesse público, se volta sobre si mesmo, focado em questões político-partidárias e ideológicas.
Não se trata de enfraquecer o STF. Pelo contrário: trata-se de fortalecê-lo em sua verdadeira missão: a de zelar pela Constituição e garantir a estabilidade institucional da República. Ao transferir a competência penal originária sobre deputados e senadores ao STJ, preserva-se o Supremo para o que é verdadeiramente essencial: o controle de constitucionalidade, os grandes temas da federação, as ações de impacto nacional que hoje disputam espaço com as mais variadas questões.
A mudança é juridicamente possível por meio de Proposta de Emenda à Constituição (PEC), alterando o art. 102 da Constituição. A proposta não fere cláusula pétrea, tampouco compromete o sistema de separação dos Poderes. Ao contrário, está em consonância com a lógica do aperfeiçoamento institucional e com os anseios da sociedade por maior eficiência e responsabilidade dos agentes públicos.
Em 2018, o próprio STF, no julgamento da Ação Penal 937, já restringiu o alcance do foro por prerrogativa de função apenas aos crimes cometidos no exercício do mandato e em razão dele. A mudança jurisprudencial foi um avanço, mas não resolve a questão estrutural da competência concentrada no STF.
A via constitucional é mais sólida, transparente e democrática, pois desloca o foro por meio de deliberação do próprio Congresso Nacional — o mesmo que será impactado pela mudança. É um teste de coerência institucional e de comprometimento com os princípios republicanos.
É tempo de revisar privilégios desproporcionais e redesenhar, com maturidade institucional, o sistema de responsabilização das autoridades da República. O foro no STJ para parlamentares federais não apenas promoveria maior eficiência e celeridade processual, como também reforçaria o sistema de freios e contrapesos, ao evitar a excessiva concentração de poder e visibilidade política no STF.
Conforme observa Pascal, “a força se mantém pela imaginação em determinado partido”, “a fantasia faz com que este ou aquele seja rei”. É sabido: o poder muitas vezes se sustenta não por mérito ou virtude, mas por representações simbólicas compartilhadas.
A proposta de deslocar o foro privilegiado para o STJ significa justamente reduzir a força instituída pelo imaginário político concentrado no STF, promovendo assim uma estrutura técnica e funcional que resista à centralização simbólica do poder.
Ademais, o deslocamento do foro penal para o STJ pode ser entendido como um gesto de reconstrução da confiança na democracia, alinhado à ideia de que instituições devem servir à cidadania com eficiência, imparcialidade e transparência. Em tempos de descrença generalizada, rever privilégios e reequilibrar competências entre os Poderes contribui para resgatar a legitimidade do sistema político e reafirmar o compromisso com os princípios republicanos.
Portanto, a sociedade brasileira exige respostas mais céleres e concretas às violações da legalidade. O deslocamento do foro é um passo nessa direção. Mais do que uma alteração formal, trata-se de um gesto de compromisso com o espírito republicano: ninguém acima da lei, ainda que dentro dos palácios.
Em conclusão, o debate que se aviva no Congresso Nacional expõe nitidamente os três caminhos que se apresentam à República: (a) a manutenção do status quo, que sobrecarrega o STF e o expõe indevidamente à arena político-partidária; (b) a extinção total do foro, solução radical que ignora riscos de perseguição política local e pode enfraquecer a independência do Legislativo; e (c) a repactuação inteligente da competência, transferindo-a para o STJ. Esta última opção, centro de nossa argumentação, consolida-se como a alternativa madura de equilíbrio institucional, capaz de descongestionar a Corte Constitucional para suas funções precípuas, ao mesmo tempo em que assegura um julgamento técnico e isento para os membros do Congresso, fortificando os pilares do Estado Democrático de Direito.