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O poder discreto da intimidade

Em algum momento recente, a política deixou de caber no palanque e começou a morar no nos nossos telefones celulares. Não foi só uma troca de cenário. Foi uma troca de regime. Saímos da lógica da influência para a lógica da convivência. No palanque, alguém fala. No feed, todo mundo fala. E é nesse deslocamento silencioso que alguns políticos passaram de figuras públicas a presenças íntimas.

A diferença não é estética. O que chamamos de horizontalidade nas redes não é apenas a ausência de intermediários. É a sensação de coabitar o mesmo espaço simbólico que as pessoas que importam para nós. O vídeo do sobrinho, a piada do amigo, a receita da vizinha e a fala do deputado acontecem no mesmo plano. A mente trata tudo como parte do cotidiano. A política deixa de ser evento e vira rotina. E rotina é o primeiro nome da intimidade.

Repare no formato de quem tem feito sucesso. Telefone na mão. Olho na lente. Ambiente reconhecível. Silêncio de bastidor. Não há cenário neutro. Há cozinha, carro, quarto com porta entreaberta. A forma informa. A câmera próxima, a luz imperfeita, a pausa entre frases. Tudo comunica proximidade. Antes, o político era o sujeito que subia um degrau. Agora, é quem senta ao lado. A influência tenta mover a opinião. A intimidade reorganiza o pertencimento.

A intimidade não se fabrica em belos e produzidos videos. Ela nasce da soma de pequenos gestos repetidos até virarem hábito. Uma resposta no comentário. Um desabafo nos stories. Um bastidor de madrugada. Cada ponto de contato adiciona uma fiada no tecido da relação. Quando percebemos, a pessoa já não é uma conta de rede social. É alguém da nossa turma. O algoritmo premia a frequência, é tudo sobre ela. O cérebro premia reconhecimento. A política ganha permanência.

Existe aqui um truque de linguagem que não é truque. A gramática do feed favorece a primeira pessoa do singular, os verbos de ação concreta, o vocabulário do dia a dia. Quando o político incorpora essa gramática, ele sinaliza um código de grupo. Fala como o grupo, ri das mesmas referências, compartilha as mesmas dores. Isso aciona um mecanismo antigo. Gente confia mais em quem reconhece como seu igual. Não é fachada, é arquitetura social.

Também é importante o que não aparece. Na intimidade, excesso de produção afasta. A presença que convida é a que deixa brechas. O plano não precisa ser impecável. O texto não precisa soar escrito. A edição não precisa apagar o tropeço. É contraintuitivo para quem aprendeu comunicação no regime da perfeição. Só que perfeição pertence ao campo da autoridade. A intimidade gosta de arestas, marcas de humano.

Há quem acredite que tudo isso reduz a política a entretenimento. É o contrário. A intimidade amplia a responsabilidade. Quem é íntimo cobra de perto. Quem é íntimo sente a ausência. Quem é íntimo não perdoa incoerência porque incoerência, na intimidade, dói. A propaganda pode sustentar influência. A contradição corrói a convivência. E quando a convivência se rompe, não se perde um seguidor. Perde-se um lugar na vida de alguém.

Esse fenômeno explica por que certos líderes, mesmo sem estrutura clássica, constroem potência. Eles sabem operar três dimensões ao mesmo tempo. A primeira é a do instante, a pequena faísca de atenção que faz parar o dedo no vídeo. A segunda é a da relação, os rituais de presença que sedimentam confiança ao longo do tempo. A terceira é a do pertencimento, a capacidade de organizar a narrativa de um nós que acolhe a pessoa onde ela está. Quem junta as três cria uma comunidade em torno de si. Não um público. Uma comunidade.

Repare nos momentos de crise. Na crise, a linguagem de palanque escala o tom. Bate mais alto, promete mais rápido, tenta empurrar opinião. A linguagem da intimidade, quando bem praticada, faz o inverso. Puxa para perto, explica com calma, admite dificuldades, estabelece compromissos verificáveis. Intimidade não é complacência. É prestação de contas contínua. Por isso a horizontalidade assusta estruturas verticais. Ela desloca o centro da conversa para onde as pessoas estão e pedem para ficar.

Há também uma mudança de unidade de medida. Durante muito tempo, avaliamos a política digital por alcance e por curtidas. Influência adora números absolutos. Intimidade prefere densidade. Não se mede um vínculo pelo tamanho do megafone. Mede-se pela capacidade de mobilizar sem precisar pedir duas vezes. Quem se move quando o político se move. Quando uma comunidade move agenda, cria trabalho voluntário, preenche auditório, sustenta um debate por semanas e não por horas, estamos vendo o efeito da intimidade.

Nada disso significa romantizar a tecnologia. Significa responsabilizar quem a usa. A mesma engenharia que permite convivência pode construir muros, se a construção do nós for a negação de um outro. Intimidade saudável exige dois cuidados simples e difíceis. Primeiro, coerência entre vida e linguagem. Segundo, abertura ao contraditório sem transformar dissenso em traição.

Se eu fosse ensinar uma equipe a trabalhar nessa lógica, não começaria por ferramentas. Começaria por hábitos. Frequência com propósito. Respostas que tratam pessoas pelo nome. Quadros que viram rituais. Bastidores que mostram processo, não só resultado. Leituras semanais de comentários para ajustar rota. Pautas que nascem de dores reais, colhidas em campo e validadas em comunidade.

O que está em jogo é maior que performance. É a chance de recolocar a política no seu lugar original. Política é gestão de vida comum. Vida comum se sustenta em vínculos. Vínculo se constrói no convívio. A rede social, com todos os seus defeitos, devolveu a possibilidade de uma esfera pública que cabe na palma da mão. Não é substituto de instituições. É o corredor onde as pessoas circulam antes de entrar na sala. Quem aprende a habitar esse corredor com humildade e coragem sai dele com algo que nenhum spot de trinta segundos entrega. Confiança.

A intimidade é o recurso escasso do nosso tempo. Pode levar mais tempo. Exige mais verdade. Pede mais trabalho invisível. Mas é o único caminho que faz sentido quando a política resolve, enfim, voltar a viver onde as pessoas vivem. Dentro do cotidiano. Ao alcance da voz. No mesmo plano onde a vida acontece.

Talvez a melhor notícia seja a mais simples. A linguagem que constrói intimidade é a linguagem da responsabilidade. Não há fórmula secreta. Há presença. Há coerência. Há a decisão diária de ocupar o feed não para ensinar gente a pensar, mas para aprender junto por que certas coisas importam. Influência muda o que as pessoas fazem. Intimidade muda com quem elas decidem fazer. É a diferença entre convencer e pertencer. É a diferença entre um discurso que termina e uma conversa que continua amanhã.


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