Artigo de Marcelo Peregrino Ferreira, Advogado e Doutor em Direito (UFSC)

A Comissão Mista do Orçamento aprovou instrução normativa para fazer com que as verbas do Fundo Eleitoral – recursos dirigidos para os partidos usarem nas eleições, sejam derivadas também das emendas de bancada.
Isto porque o Poder Executivo em sua proposta orçamentária (Lei Orçamentária Anual de 2026), aprovada em 2025 para os gastos do ano seguinte, destinou apenas 1 bilhão de reais para a composição do Fundo.
Essa instrução normativa vai permitir que os valores do Fundo Eleitoral sejam os mesmos dos recursos usados em 2024 e 2022, caso ratificados pela Câmara, chegando a 4,9 bilhões, sendo 1 bilhão do Poder Executivo e 3,9 bilhões de emendas da bancada.
Veja-se que, ao contrário do que se alardeia, não houve qualquer aumento dos valores do Fundo Eleitoral, até porque a decisão cabe ao Parlamento que ainda não aprovou o orçamento para o ano de 2026.
Mesmo assim essa votação simbólica foi acompanhada da palavra “imoralidade”. Palavras de ordem contra o Legislativo foram proferidas como se essa alteração da origem das verbas a serem aprovadas fosse a confirmação que há 300 picaretas no Congresso Nacional.
Como visto, sem razão, pois nada foi aprovado.
A ideia de moralidade na política, essa perversa confusão conceitual da moralidade administrativa, é sempre causa de muitos equívocos na histórica nacional, a começar pelas inelegibilidades.
O modelo inaugurado no regime militar de definição das inelegibilidades por lei foi seguido na redação da Emenda de Revisão n. 4 da atual Constituição. Hoje, em pleno regime democrático, vive-se em torno de padrões de comportamento e contornos da inelegibilidade criados, exatamente, para suprimir e abafar o pluralismo político, permitindo o afastamento de candidatos sob os mais variados argumentos entoados no mesmo cântico desafinado da “moralidade” e da sua “vida pregressa”, conforme artigo 151 da Constituição de 1967.
Tem razão histórica essa confusão de moralidade e função inequívoca de controle…
Retornando ao ponto, a maior parte da história tivemos um financiamento exclusivamente público das eleições.
Evidentemente, o financiamento privado e por pessoa jurídica nunca deixou de existir e jamais abandonará a política, em uma eleição num regime capitalista. A proibição apenas leva esses recursos para a clandestinidade e tem um fator inibitório para um candidato que deseja seguir as regras, em oposição dos audaciosos que tem uma vantagem enorme sobre esse candidato exemplar.
Esse fato inexorável da vida tomou destaque com a CPI do Caso PC Farias que escancarou as irregularidades ocorridas na captação de recursos privados e ilegais para a campanha presidencial de 1989, o que levou ao impeachment do ex-presidente Fernando Collor.
O Relatório Final da CPI recomendou projeto de lei com a adoção do financiamento misto e disse, com raríssima lucidez:
“No entanto, a não ser que nos deixemos seduzir pelo falso moralismo de que política é possível sem recursos, temos que enfrentar o problema de como suprir os meios para garantir a divulgação de ideias e de seus representantes, fundamental à democracia representativa. […] Abandonemos a hipocrisia, não contudo para permitir o domínio indiscriminado do poder econômico na formação da vontade política. Devemos impor parâmetros realistas, porém, controle severo, para os que infringirem a lei. Assim, estaremos, certamente não acabando com a corrupção eleitoral, mas contribuindo para que a Sociedade e a Justiça possam combatê-la”.
Em 1997, em resposta à recomendação da CPI, a Lei das Eleições (Lei n. 9.504/97) permitiu o financiamento e custeio de campanhas pelos candidatos que passaram a receber doações de pessoas físicas (art. 23, § 1º, inciso I, onde é permitido até 10% dos rendimentos brutos apurados pelo ano anterior à doação) ou jurídicas (art. 81, §1º, representando 2% do faturamento bruto do ano anterior), conforme o caso, com limitação de teto de gastos.
Em julgamento em 2016 (primeiro voto foi em 2013), no entanto, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Conselho Federal da OAB que versava sobre a norma permissiva de doação privada por pessoa jurídica para as campanhas eleitorais, tudo se resumindo a uma pobre frase ecoada como se fosse salvar as almas dos círculos do Inferno: empresa não é pessoa.
A inconstitucionalidade veio forte na imoralidade do regime implantando no ano de 1997, após a recomendação da CPI, com o intuito de evitar a “formação de relações e alianças promíscuas e não republicanas entre aludidas instituições e o Poder Público” com a doação por pessoa jurídica.
As pessoas jurídicas que nunca deixaram de doar foram novamente lançadas na clandestinidade, em nome da moralidade, ou seja, o Estado perdeu, mais uma vez, o controle das doação e o conhecimento específico sobre os recursos existentes em uma eleição, como disse o Min. Teori em seu voto: “O estabelecimento de uma vedação deste calibre por via judicial fecharia as portas antecipadamente para eventuais propostas legislativas de uma presença mais comedida do capital corporativo no financiamento político, comprometendo o Supremo Tribunal Federal com as imprevisíveis consequências da instalação de um modelo predominantemente público, cuja eficiência ainda não tem comprovação empírica mundo afora”.
Mais do que isso, proibiu-se a participação de pessoas jurídicas na formação da vontade popular ao argumento da corrupção dos costumes, como se uma associação que defenda a pauta ambiental, por exemplo, não possa opinar e participar da vida de seu país, o que prejudica o direito à liberdade de manifestação e expressão.
O uso desses recursos não pode ser demonizado ou tratado como imoral, porque se presta para financiar a democracia e permitir que ela exista. É a partir do empenho desses valores que as pessoas conhecem seus candidatos e que as propostas são veiculadas.
Exatamente por isso, a Corte Suprema dos Estados Unidos já decidiu em Citizens United v. Federal Election Comission (2010) que a proibição da doação de pessoas jurídicas para campanhas eleitorais violava a Primeira Emenda da Constituição americana (liberdade de expressão), porque para a disseminação da informação, gastar dinheiro é essencial, como havia sido estabelecido em Buckley v. Valeo (1976), ou seja, quando aporto recurso em determinado candidato, exercito o meu direito constitucional de liberdade de expressão e manifestação política.
De todo modo, desde 2016, assim, tem-se somente a doação por pessoa física e o Estado se viu obrigado a custear a maior parte das eleições.
Uma campanha custa dinheiro e alguém deve pagar por isso, mas 4,9 bilhões, caso sejam aprovados, representam apenas 23 reais por pessoa, levando-se em consideração a população brasileira de 213 milhões de pessoas. Esse montante não pode ser considerado um valor excessivo, per capita, para que a população possa conhecer as propostas, candidatos em um ambiente regido pela liberdade de manifestação e expressão.
Por óbvio, há melhorias a serem implementadas, das quais pode-se apontar para debate: 1. diminuição do número de candidatos por partido; 2. fim da anomalia da lista aberta em um sistema proporcional com adoção da lista fechada por partido ou coligação; 3. limitação de doação por partido a 5% do teto de limite de gasto; 4. proibição de doação por uma pessoa jurídica para vários partidos; 5. criação de barreira maior para o recebimento de recursos do Fundo (35% dos valores do Fundo são distribuídos entre os partidos com um deputado); 6. adoção de mecanismos de democracia interna nos partidos.
Finalmente, é hora de escapar das ciladas das respostas fáceis e assumir um debate mais aprofundado – longe desses moralismos, porquanto em se tratando de direitos políticos, a liberdade deve ser tida como regra, lembrando a lição do Justice Kennedy no julgamento de Citizens United v. FEC: “A expressão (fala) é um mecanismo essencial da democracia, pois é o meio de responsabilizar os funcionários perante o povo (…) (“Em uma república onde o povo é soberano, a capacidade dos cidadãos de fazer escolhas informadas entre os candidatos a cargos públicos é essencial”). O direito dos cidadãos de indagar, ouvir, falar e usar informações para chegar a um consenso é uma pré-condição para um autogoverno esclarecido e um meio necessário para protegê-lo”.