Artigo de Otávio Sendtko Ferreira, advogado e sócio do Núcleo de Contratação Pública, Ambiental e Urbanístico da Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados, e advogado Thanderson Pereira de Souza

A Medida Provisória nº 1.309/2025, insere-se em um contexto de crise desencadeada pela imposição unilateral de tarifas adicionais de importação pelos Estados Unidos sobre produtos brasileiros. O episódio, apelidado de “tarifaço”, expôs certa vulnerabilidade das cadeias produtivas nacionais diante de choques externos, impactando sobretudo setores que negociam com mercado norte-americano e regiões cuja pauta exportadora é concentrada em poucos itens.
Embora o tarifaço tenha sido mitigado por exceções relevantes, não se pode afirmar que tenha sido esvaziado. Ao contrário, os efeitos foram severos para determinados segmentos, com retração abrupta de embarques e perdas significativas em estados como Ceará e Rio Grande do Sul. Esse cenário evidenciou a necessidade de respostas rápidas, capazes de atenuar os efeitos econômicos e sociais da medida externa.
O Governo Federal, em um sinal de irresignação e soberania, reagiu com a edição da Medida Provisória nº 1.309/2025, que cria conjunto de iniciativas emergenciais que envolveram crédito subsidiado, incentivos fiscais, diplomacia comercial e instrumentos de apoio ao comércio exterior. Entre essas respostas, destacou-se a criação de mecanismos jurídicos específicos destinados a absorver parte da produção que perdeu mercado internacional, especialmente no setor de alimentos.
Dentre as estratégias adotados, a Medida Provisória permite que a Administração adquira, por dispensa de licitação e com procedimentos simplificados, gêneros alimentícios que deixaram de ser exportados em razão das tarifas adicionais, configurando-se como alternativa para sustentar a renda de produtores.
Não faltaram, entretanto, interpretações apressadas nas redes sociais – ausentes da ponderação cognitiva necessária, claro! Circulou, por exemplo, a ideia de que a Administração Pública poderia agora adquirir “café gourmet” com base na Medida Provisória. Esse tipo de comentário, embora provocativo, ajuda a evidenciar a importância de compreender com precisão o escopo da norma e de sua regulamentação.
A Medida Provisória criou hipótese excepcional de dispensa de licitação(artigo 11, caput), restrita à aquisição de gêneros alimentícios que tiveram sua exportação aos Estados Unidos prejudicada em razão das tarifas adicionais impostas naquele mercado.
No que se refere aos entes e órgãos públicos, o regime aplica-se a todos aqueles abrangidos pelo artigo 1º da Lei nº 14.133/2021 — União, Estados, Distrito Federal e Municípios — englobando a Administração Direta e Indireta de todos os Poderes (artigo 11, § 2º). Trata-se, portanto, de medida com alcance amplo dentro da Administração Pública.
Quanto aos gêneros alimentícios, o § 1º do artigo 11 atribuiu aos Ministros da Agricultura e Pecuária e do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar a edição de ato conjunto para regulamentar a matéria. Esse regulamento deve definir os produtos elegíveis e a forma de comprovação das perdas. Essa função foi exercida pela Portaria Interministerial MDA/MAPA nº 12, de 22 de agosto de 2025, que fixou lista inicial de 20 produtos distribuídos em oito setores: açaí, água de coco, castanha de caju, castanha-do-brasil, manga, mel, pescados e uva, com possibilidade de atualização – embora até o momento da submissão deste artigo (30/09/2025) não haja notícia de atualizações.
Dessa forma, ainda que outros gêneros alimentícios tenham sido atingidos pelo tarifaço, como carnes e cafés, a contratação direta somente pode ocorrer em relação aos produtos constantes na Portaria e em benefício dos produtores efetivamente impactados pelas tarifas, assegurando a vinculação da política pública ao contexto que a justificou.
Por fim, em relação aos produtores e empresas que podem ser contratados, a Portaria Interministerial MDA/MAPA nº 12/2025 estabeleceu critérios específicos de habilitação, vinculando a participação ao efetivo impacto causado pelas tarifas adicionais. Dessa forma, apenas exportadores diretos e indiretos que comprovem perdas no comércio com os Estados Unidos podem se beneficiar do regime, assegurando que os contratos se destinem aos agentes econômicos efetivamente atingidos.
A Medida Provisória introduziu procedimentos diferenciados em relação às exigências da Lei nº 14.133/2021, especialmente no que se refere ao planejamento da contratação, aos critérios de habilitação e ao registro de preços. A Lei permanece aplicável, contudo, naquilo que não conflitar com as disposições específicas da Medida Provisória (artigo 15)
Simplificação documental no planejamento:
O primeiro aspecto é a simplificação documental. A Medida Provisória dispensou a elaboração do Estudo Técnico Preliminar (artigo 12, inciso III) e autorizou a utilização de termo de referência simplificado (artigo 12, inciso II), que deve conter, ao menos: definição do objeto, fundamentação da contratação, descrição resumida da solução, requisitos, critérios de medição e pagamento, estimativa de preços e adequação orçamentária (artigo 12, § 2º).
Pesquisa de preços:
A formação do preço deve ser realizada com base na média de valores obtidos em pesquisa junto a potenciais fornecedores (artigo 12, inciso V). Essa previsão levanta debates relevantes: diante da retração da demanda, os preços podem cair abruptamente, contudo, a pesquisa da média de preços adotará, possivelmente, valores praticados anteriormente ao tarifaço. Nesse cenário, surge uma dúvida relevante: a Administração poderia pagar acima do preço de mercado para sustentar os produtores afetados?
Embora não haja resposta explícita, parece plausível que a intenção da norma seja justamente mitigar essas perdas, evitando que os produtores acabem sendo forçados a vender a preços muito inferiores aos praticados em “tempos de normalidade”.
Nesse ponto surgem críticas relevantes, pois o procedimento pode acabar afastando a busca pela proposta mais vantajosa em favor de outras finalidades públicas – ainda que legítimas. Conforme ressalta Joel de Menezes Niebuhr, embora legítimas, essas finalidades não podem se sobrepor ao objetivo primário do procedimento, que é a busca pela proposta mais vantajosa. Registra também que não é viável incorporar todas as demandas morais e políticas públicas às contratações públicas, sob pena de inviabilizar o próprio instituto, de modo que o uso das contratações como instrumento de políticas públicas acaba sendo seletivo, privilegiando algumas pautas em detrimento de outras.
Outro ponto potencialmente polêmico é a possibilidade de realizar a pesquisa apenas diretamente com fornecedores, hipótese expressamente autorizada pelo inciso V do artigo 12.
Apesar da autorização, recomenda-se cautela: o Tribunal de Contas da União tem reiterado a importância de pesquisas mais amplas, com a chamada “cesta de preços”, envolvendo diferentes fontes, inclusive com fornecedores locais quando viável (a exemplo dos recentes Acórdãos TCU 1712/2025-Plenário e 1855/2025-Plenário). Assim, sempre que possível, devem ser mantidas as boas práticas de pesquisa de mercado, justificando-se eventual limitação.
Critérios especiais de habilitação:
A Portaria Interministerial MDA/MAPA nº 12/2025 regulamentou a forma de comprovação das perdas para fins de habilitação, diferenciando as exigências conforme o perfil do produtor ou exportador.
Para os exportadores diretos aos Estados Unidos, exige-se a apresentação de Declaração de Perda, acompanhada de comprovação de ao menos uma exportação do produto registrada no SISCOMEX a partir de janeiro de 2023 (artigo 2º, inciso I, alíneas “a” e “b”).
Já os produtores que fornecem, direta ou indiretamente, a empresas exportadoras devem apresentar Autodeclaração de Perda, atestando os impactos sofridos em decorrência das tarifas adicionais (artigo 2º, inciso II).
Por fim, os produtores que exportam diretamente aos Estados Unidos ficam submetidos aos mesmos requisitos aplicáveis às pessoas jurídicas exportadoras (artigo 2º, parágrafo único).
Registra-se que essas exigências são adicionais às definidas pela Lei nº 14.133/2021, cabendo ao órgão licitante avaliar a pertinência de exigir de habilitação jurídica, técnica, fiscal, trabalhista, social e econômico-financeira, conforme o caso.
Registro de preços e adesões (“caronas”):
A Medida Provisória inovou ao autorizar um registro de preços “anabolizado” (artigo 12, inciso IV).
Foram admitidas todas as hipóteses de adesão “de cima para baixo”, sem restrições em relação a esfera da Administração, afastando a vedação constante no § 8º do artigo 86 da Lei nº 14.133/2021, de modo que até órgãos da Administração Federal podem aderir a atas municipais, por exemplo.
Além disso, a Medida Provisória ampliou o limite global de adesões: enquanto a Lei nº 14.133/2021 restringe o total das adesões ao dobro do quantitativo registrado em ata (artigo 86, § 5º), o novo regime permite que as adesões alcancem até cinco vezes esse montante (artigo 12, § 1º).
Em relação ao limite individual de cada órgão ou entidade aderente a Medida Provisória não estabeleceu regra, de modo que se aplica a regra geral de 50% dos quantitativos de cada item prevista no § 4º artigo 86 da Lei nº 14.133/2021.
Limitações temporais
Os contratos celebrados com fundamento na Medida Provisória possuem prazo máximo de vigência de 180 dias (artigo 12, inciso VI). Além disso, as contratações devem ser formalizadas dentro de 180 dias contados da publicação da norma (artigo 13).
Essa segunda limitação funciona como uma verdadeira “data de validade” dessa hipótese de dispensa: mesmo que a Medida Provisória venha a ser convertida em lei, não será possível firmar novos contratos após esse marco temporal – salvo se houver alteração desse artigo quando da promulgação pelo Congresso Nacional. A restrição repercute também sobre o sistema de registro de preços, pois, ainda que existam saldos remanescentes em atas vigentes, eles não poderão ser utilizados após o prazo de 180 dias da publicação da Medida Provisória.
A Medida Provisória nº 1.309/2025, portanto, foi uma resposta rápida a um choque externo que colocou em risco cadeias produtivas inteiras. Ao abrir espaço para contratações públicas simplificadas, buscou sustentar produtores afetados pelo tarifaço.
Resta saber, no entanto, se a medida cumprirá seu papel na prática. O desafio será equilibrar a urgência econômica com o respeito aos limites legais e institucionais. A experiência dirá se esse arranjo servirá apenas como alívio momentâneo ou se deixará lições duradouras para a gestão pública em tempos de crise, inclusive diplomáticas.
Retomando a provocação inicial, fica claro que a Medida Provisória nº 1.309/2025 não autoriza a compra indiscriminada de qualquer gênero alimentício atingido pelo “tarifaço” – como o café gourmet. O alcance da medida está estritamente vinculado à lista de produtos definida na Portaria Interministerial MDA/MAPA nº 12/2025, que, até este texto, não incluiu nenhum tipo de café, muito menos o gourmet.