Artigo de Isaac Kofi Medeiros e Lucas Simplicio Furlan, sócios do Núcleo de Direito Público da Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados

O Governo Federal publicou na terça-feira, 21 de outubro de 2025, o Decreto n° 12.681/2025, que finalmente regulamenta a concessão de moradia aos residentes.
O Decreto vem preencher uma lacuna deixada pela Lei de Residência Médica. Embora a legislação garantisse o direito à moradia, não havia regulamentação especificando de que modo essa obrigação deveria ser cumprida pelas instituições que ofertavam programas de residência.
Essa lacuna havia criado um ambiente de insegurança jurídica, pois alguns tribunais brasileiros entendiam que a falta de regulamentação impediria o residente de usufruir do direito à moradia. Outros tribunais, favoráveis aos residentes, concediam auxílio-moradia em dinheiro como compensação, no valor mensal de 30% da bolsa de residência, conforme orientação da Turma Nacional de Uniformização da Justiça Federal (Tema 325).
Para os casos desfavoráveis, o cenário era paradoxal. A Administração Pública não regulamentava o direito e, por via de consequência, suas instituições de ensino e saúde não tinham obrigação de fornecer moradia aos residentes, num ciclo vicioso em que o Poder Público se beneficiava da própria inércia: economizava recursos a despeito da intenção do legislador.
O Decreto chega, então, para terminar com a insegurança jurídica e regulamentar o direito à moradia do residente. A principal novidade é o reconhecimento do direito ao pagamento do auxílio-moradia nos casos em que a instituição de ensino não disponibilizar a estrutura habitacional. A norma estabelece uma alternativa clara: ou a instituição fornece a moradia física, ou paga um auxílio substitutivo em dinheiro.
O Decreto esclarece que caso o residente opte por não utilizar a moradia oferecida, ele não fará jus ao auxílio em dinheiro. Nos casos em que a instituição não disponibilizar a moradia, o auxílio deverá ser pago em espécie. O Decreto, contudo, fixa que o apoio financeiro será de 10% sobre o valor da bolsa de residência, pago mensalmente.
Este é o ponto mais crítico da nova norma. Representa uma diferença substancial em relação ao patamar de 30% que vinha sendo aplicado pelos tribunais brasileiros em ações judiciais movidas até o momento, especialmente após esse percentual de 30% ter sido definido pela Turma Nacional de Uniformização da Justiça Federal (Tema 325).
Hoje o valor da bolsa do residente é de R$4.106,09, conforme portaria do Governo Federal. Com pouco mais de 400 reais, é dificílimo obter uma moradia digna, sobretudo nos grandes centros urbanos onde estão localizados os principais programas de residência médica. Na prática, os 10% servem como um auxílio financeiro adicional da bolsa já existente, mas não como um garantidor do direito à moradia. Nem de longe.
Seguramente, os tribunais terão que se pronunciar sobre a aplicabilidade imediata desses 10%. Aos processos já transitados em julgado, a Constituição garante a coisa julgada. Ou seja, havendo decisão irrecorrível, prevalece a condenação que fixou o direito ao auxílio-moradia em 30% do valor da bolsa.
Porém, os processos que ainda estão em curso podem ser objeto de contestação. A instituição ofertante do programa – ou, sendo o caso, os entes federativos que representam ela em juízo – podem requerer que eventual condenação, ainda que indesejável, seja fixada em 10% do valor da bolsa, na forma do novo Decreto.
Ao nosso ver, apesar de o Decreto ter reduzido o percentual aplicável de 30% para 10%, a proteção constitucional do direito adquirido e o princípio do tempus regit actum (o tempo rege o ato) devem prevalecer em favor dos residentes que já ajuizaram ações antes da publicação do Decreto.
À época da realização da residência e, consequentemente, da constituição do direito à moradia, vigorava o Tema 325 do TNU. Essa orientação era a norma aplicável e gerou uma expectativa legítima de usufruto desse direito. Desse modo, a regra vigente quando a situação jurídica se consolidou deve ser respeitada, impedindo que o novo Decreto retroaja para impactar ou prejudicar relações jurídicas devidamente constituídas antes de sua vigência.
O Decreto também soluciona outra controvérsia que trazia insegurança, pois deixa claro que a instituição de ensino ou de saúde deve fornecer uma espécie de apartamento ou alojamento, com espaço destinado ao sono, descanso, higiene pessoal, preparo e consumo de alimentos e limpeza geral, interligado aos serviços de esgoto, energia elétrica e fornecimento de água. Pode ser individual ou compartilhado, a critério da instituição, devendo o residente arcar com as taxas de energia, água etc., como num apartamento normal.
Isso é importante porque algumas instituições costumavam contestar as ações judiciais de residentes afirmando que já disponibilizam um espaço para descanso e higiene pessoal, no próprio hospital, como se isso fosse suficiente para atender o direito à moradia. Ou seja, como se uma sala de descanso equivalesse à moradia. Evidentemente que não é e o Decreto vem para esclarecer isso, colocando uma pá de cal em qualquer sombra de dúvida que ainda poderia haver.
O Decreto 12.681/2025 é uma vitória ambígua e agridoce. Ao finalmente quebrar o ciclo vicioso da inércia administrativa e garantir ao médico residente o direito claro a uma moradia, seja por meio de alojamento físico ou auxílio, o Governo Federal cumpre uma obrigação de longa data.
Contudo, essa regulamentação carrega o fardo pesado de fixar o apoio financeiro em irrisórios 10% da bolsa. Assim, a norma, que nasceu para garantir um direito, paradoxalmente, estabelece um patamar de auxílio que destoa da jurisprudência e lança uma sombra de subvalorização sobre as necessidades logísticas e a dedicação integral dos futuros especialistas. O desafio agora reside em determinar se a clareza da lei será suficiente para compensar o seu notável aperto financeiro.





