Narrenschiff: os loucos e a população em situação de rua. Por Marcelo Peregrino Ferreira

Artigo de Marcelo Peregrino Ferreira, advogado, Doutor em Direito (UFSC)

No início era a lepra como anunciou Foucault em sua monumental História da  Loucura. Dos séculos XIV ao XVII, os leprosários se espalham pela Europaao ponto da Diocese de Paris ostentar 43 estabelecimentos para esses indesejados.Inglaterra e Escócia chegaram a ter, em conjunto, 220 leprosários.

Desaparecida a lepra, ficaram os vestígios desse personagem ou grupo excluído, ao redor do qual são traçados os limites do convívio social e ostentada a presença de Deus pela sua cólera e bondade de permitir a expiação.

Surgem as doenças venéreas para ocupar esse espaço valendo-se dos leprosários como no hospital da Paróquia de Sain-Eustache e de Saint Nicholas. Esses doentes são rejeitados até pelos leprosos. Foi voo de galinha na história da exclusão, contudo, tendo sido os doentes acolhidos em locais admitidos para outros enfermos ao longo do tempo.

A verdadeira substituição da lepra, como “espaço moral de exclusão”e fruto de terror comunitário, foi a loucura.

Imagem do quadro Nau dos Loucos

E a imagem no cenário da Renascença é a Nau dos Loucos, a Das Narrenschiffilustração do poema de Sebastian Brant. Cuida-se da ideia de uma viagem simbólica que vai da fortuna ao destino ou à verdade e inunda a literatura da época. De fato, longe da alegoria, Narrenschiff existiu e transportou loucos de um lado para o outro, de expurgo municipal em expurgo, em um navio errante e sem rumo.

Há loucos tratados em casa, caindo esses expurgos, preferencialmente sobre os estrangeiros, inserindo-se na preocupação de segurança das autoridade locais.

Hoje esses espaços de exclusão são ocupados pela população redundante, um refugo de gente que, por diversas razões, não são mais acolhidas nos seus locais de origem. A forte imagem é de Baumann, em Vidas Despedaçadas, onde se afirma uma causa estrutural global na “produção do “refugo humano”, ou de “seres humanos refugados” (ou “excessivos” e “redundantes”, ou seja, os que não puderam ou não quiseram ser reconhecidos ou obter permissão para ficar)” como um produto inevitável da modernização” e da modernidade.

Segundo Bauman, o triunfo da modernidade como “condição universal da humanidade”, afastou o mecanismo de regulação da superpopulação de remessa da gente redundante para países “em desenvolvimento”, impondo um vácuo para as “soluções globais para problemas locais”. Em síntese, há uma “crise aguda da indústria de remoção do refugo humano” e não há locais de despejo para a “reciclagem do lixo”…

A modernização, assim, libera um quantidade enorme de seres humanos inaptos para produzirem sua própria sobrevivência, o que traz a agenda da imigração, dos refugiados, da segurança e das “pessoas em situação de rua” (seja lá o que isso quer significar) para o debate local de todas as cidades.

A forma de tratamento a essas parcelas da população já não passa mais pelos guetos, mas sobretudo pela criminalização – sem a função de centros de reciclagem ou de “reeducação” e sim, na visão de Baumann, como meros depósitos de indesejáveis sem a possibilidade do exercício da cidadania plena.

A destituição da cidadania dos imigrantes, refugiados e indesejáveis em geral, não é tema novo. A França desnaturalizou seus cidadãos com origem inimiga em 1915. Em 1922, A Bélgica afastou a nacionalidade daqueles que cometeram “atos institucionais” na guerra. O regime fascista italiano, em 1926, criou a figura dos “indignos da cidadania italiana”. 

A partir de 1933, nesse terrível marco, vem as Leis de Nurembergcomo meio de proteção da hereditariedade (esterilização forçada nos casos de debilidade mental e até de alcoolismo grave), a lei de proteção do sangue e da honra (proibição de casamentos mistos e proibição de relacionamento sexual entre alemães e judeus), lei do subsídio ao casamento (estímulos aos casamentos “puros”) e mais um emaranhado de disposições de tal natureza.

E neste quadro de problemas globais sem soluções locais, há um ingrediente local devastador e que tende a acirrar o debate catarinense. 

Santa Catarina exibe dados surpreendentes: a) menor taxa nacional de desemprego (IBGE, 2025); b) 5º maior PIB do país; c) 1º lugar no ranking de segurança pública (CLP); d) 3º Índice de Desenvolvimento Humano no Brasil (IDHM, AtlasBR).

Não por outra razão, o Estado se tornou o principal destino de migrantes no país, com saldo positivo de 354,3 mil novos moradores vindos de outras unidades da federação, segundo dados do IBGE (julho de 2025).

O problema da migração interna será mais sentido aqui que em qualquer outro Estado da Federação, a preponderar o movimento de 2025.

Nada obstante os dados econômicos favoráveis, há quem diga que Santa Catarina parece viver de um duplo incômodo latente que tem reflexo evidente no debate da política estadual. 

Um incômodo interno do chamado “interior” (trabalhador, operoso, industrial), em relação ao “litoral” (mandrião, boa vida, folgado) muito em decorrência da corte desterrense da capital do Estado, onde grande parte dos melhores salários do funcionalismo público se encontra. Já houve políticos que se beneficiaram do bordão “por toda Santa Catarina” a sugerir a exclusão de municípios da agenda governamental.

O outro incômodo externo é de dentro para fora e se revela numa percepção de que o Estado – pelos indicadores sociais e econômicos que ostenta e pelo retorno de recursos, em relação ao que é aqui produzido, sustenta o Brasil. Esse dado também é objeto frequente do discurso subliminar de secessão de Santa Catarina doresto do país…

E não é para menos. Santa Catarina sempre teve pálida representação nacional e o Governo Central insiste na sua ausência. Talvez SC seja o filho menos mimado da federação e tenha sabido sobreviver sem facilidades dos recursos públicos federais como os muitos açorianos, alemães e italianos deixados a deus-dará em plena campanha imperial de imigração e suas promessas descumpridas, sem falar na população escravizada e nos confinados sobreviventes indígenas nas Terras de Xapecó e Ibirama.

Uma pequena parcela da população não irá se contentar com o ufanismo e orgulho do que a comunidade catarinense criou e na quadratura do extremismo político os incômodos podem se tornar ressentimento, raiva e ódio, esses elementos ideais para a radicalização política.

Essa conjuntura ressentida pode chamar para uma percepção de superioridade local sobre todos os outros e atingir, em particular, essa massa de pessoas em situação de rua, vindas de outros estados e outras cidades que ameaçam uma visão de ordem, segurança e beleza e de um patrimônio próprio do catarinense. E a experiência histórica demonstra que percepção de superioridade, fundada em raça, pertencimento, nacionalidade, gênero sempre implica em violação de direitos humanos.

E aqui vem a biopolítica moderna na esteira ideal do ressentimento de poucos, inaugurada pelo nazismo, onde o soberano é aquele que decide o valor e o desvalor de cada vida e que tem o dever de proteger o corpo biológico e também cultural da nação, fundado na herança genética de um povo, na sua eugenesia. Esse corpo biológico precisa ser cuidado para não ser violado e este o papel primordial do governo ao impedir a sua dessacralização pelo estrangeiro e pelo impuro. Agambenalerta para uma certa conjugação de fatores para melhor entender o Reich: “o extermínio de judeus somente adquire todo sentido nesta perspectiva, em que a polícia e política, motivos eugênicos e motivos ideológicos, cuidado da saúde e luta contra o inimigo se tornam absolutamente indistintos”. A política higienista se funda na saúde/segurança como instrumentos de sua ação.

A correlação é inevitável e já se sabe onde pode terminar.

Para piorar, os partidos políticos têm tido uma imensa dificuldade de cumprir o seu papel de organização das aspirações diversas em uma sociedade democrática. Infelizmente, partes da esquerda e da direita desinformam e, ao se proclamarem intérpretes legítimos de uma imaginada e irrealizável “vontade do povo”, tratam o adversário de suas ideias como inimigos a serem abatidos e desqualificados. De fato, as muitas visões de mundo, em um regime democrático, têm o dever de humildade e do diálogo, porque as democracias se fazem da transação e do compromisso entre pessoas que divergem.

De todo modo, as pessoas em situação de rua não irão desaparecer em uma nau a singrar os mares como foi a Nau dos Loucos da Idade Média – Narrenschiff , em busca de outro porto que os exclua nessa vida errante de indesejáveis, nem poderão ser exterminados ou afastados para a manutenção do impoluto corpo biológico/culturaltão sonhado pela tanato-política e pelos radicalizados do extremismo político.

A bem da verdade é que não há solução fácil, porque a segurança de todos é também um dever do Estado e a exportação de pessoas em situação de ruapromovidas por outros entes da federação é uma realidade.

Há muito mais chances de se cometer mais equívocos do que acertos, porque tudo é novo e embolado em um palco tóxico da polarização política, mas não esquecer os exemplos históricos já ajuda muito.

Nesse mundo cada vez mais paradoxal em que as mulheres de direita têm assumido um relevante protagonismo e a migração de um carioca tem sido razão de crítica da esquerda, precisa-se é de imaginação com cinzel, da Constituição Federal como régua e da sobrevivência dos moderados, sempre hostilizados pelas turbas do fanatismo político.

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