Quem lê o despacho do ministro Alexandre de Moraes e, na sequência, a transcrição da audiência de custódia do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), encontra dois personagens distintos habitando o mesmo CPF. A conversão da prisão domiciliar em preventiva, decretada no sábado, não é apenas um ato jurídico; é o choque frontal entre a biografia política que o ministro do Supremo Tribunal Federal descreve e a fragilidade humana que a defesa alega.

Para o STF, o Bolsonaro que precisa ser encarcerado na sede da Polícia Federal é um estrategista frio de uma organização criminosa ativa. Nas palavras de Moraes, é o líder capaz de articular uma “vigília” com ares religiosos para criar tumulto, usar a massa como escudo humano e coordenar uma fuga internacional.
Nesta ótica, a violação da tornozeleira eletrônica à 00h08 de sexta para sábado não foi um acidente, mas o passo inicial de um plano de evasão que já levou aliados como Alexandre Ramagem e Eduardo Bolsonaro a deixarem o país. O magistrado vê dolo, cálculo e perigo à ordem pública.
Porém, diante da juíza auxiliar Luciana Yuki Fugishita Sorrentino, do gabinete do ministro, na audiência de custódia, surgiu um “outro” Bolsonaro. Não o capitão que comanda exércitos políticos, mas um idoso confuso, vítima de uma interação medicamentosa desastrosa entre pregabalina e sertralina, receitadas por médicos que “não se comunicam”.
Ao tentar explicar o inexplicável — o rompimento do lacre da tornozeleira —, o ex-presidente alegou uma “certa paranoia” e uma alucinação de que havia uma escuta no aparelho. Foi aí que entrou em cena o detalhe mais insólito do depoimento: o uso de um “ferro de solda” para abrir o equipamento.
A defesa tentou convencer o Judiciário de que a violação foi fruto de um surto psiquiátrico, não de uma tentativa de fuga. Segundo Bolsonaro, a “vigília” convocada pelo filho Flávio Bolsonaro (PL) ocorreria a 700 metros de sua casa, longe o suficiente para não servir de cobertura para uma escapada cinematográfica.
Ao converter a prisão, Moraes rejeitou a tese do “vovô medicado” e ficou com a do “articulador golpista”. No Brasil polarizado de 2025, a verdade sobre Jair Bolsonaro tornou-se uma questão de fé, não de fatos. Para grande parte do eleitorado, a imagem do idoso medicado e perseguido valida o martírio; para outra grande parte, a descrição do chefe de organização criminosa confirma o perigo institucional.
O drama é que os episódios recentes — da ríspida ordem de prisão à insólita narrativa do ferro de solda — não servem para elucidar quem é o homem por trás do mito. Pelo contrário: tanto lógica implacável de Moraes quanto a defesa mambembe de Bolsonaro parecem empenhadas em fundir realidade e caricatura, tornando quase impossível distinguir onde termina a estratégia política e onde começa o delírio.
No fim, cada brasileiro já escolheu qual dos dois Bolsonaros prefere enxergar, e os autos do processo servem apenas como espelho para convicções prévias.






