Artigo de Ana Paula da Silva (Paulinha), deputada estadual

A sessão da semana passada na Assembleia Legislativa ainda reverbera em mim. Enquanto eu falava sobre empatia, sobre humanidade e sobre aquilo que separa um Estado justo de um Estado indiferente, retornei mentalmente a um episódio que vivi alguns anos atrás. Um jovem de apenas 18 anos, amigo de uma das minhas filhas, compartilhou comigo uma verdade dura que carrega desde cedo:
“Tia, eu não posso sair na rua como a tua filha. Se eu estiver de moletom e chinelo, alguém vai me parar. Eu não posso esquecer a carteirinha no restaurante da faculdade, mas meus amigos brancos podem; a minha sempre será conferida. Eu não posso estar mal vestido num ônibus, senão vão puxar a bolsa achando que vou roubar.”
Esse relato não é um ponto isolado. É um retrato. E, para percebê-lo, bastava olhar ao redor: quantas pessoas negras ocupavam cadeiras no parlamento? Quantas chegam a algum espaço de decisão? A ausência não é fruto do acaso; é consequência direta de como construímos e limitamos o acesso às oportunidades.
O relato acima era, na verdade, a premissa de um diagnóstico. E, se a dimensão humana ainda não bastar, os números bastam.
Segundo o Censo de 2022, cerca de 24% da população catarinense é negra, quase um quarto do estado. São homens e mulheres que estudam, trabalham, criam seus filhos e constroem o nosso futuro. Ainda assim, pela forma como a Lei de Cotas está estruturada, essa presença de 24% se converte em apenas 12% das vagas destinadas a estudantes negros nos vestibulares, metade do que seria proporcional à nossa demografia.
Para visualizar isso, pense em 100 vagas. Primeiro, 50 vão para estudantes que vieram integralmente da rede pública. Depois, dentro desses 50, acontece a divisão entre renda e, por fim, entre grupos raciais. A matemática é simples e contundente. Para uma população negra de 24%, o resultado final se traduz em apenas 12 vagas, isto é, 12%.
É esse conjunto mínimo de oportunidades que o projeto aprovado eliminou. Não estamos falando de privilégios. Estamos falando de um espaço já limitado, que agora corre o risco de se tornar ainda menor.
A ciência reforça aquilo que a realidade mostra. Pesquisas amplas e consistentes sobre o desempenho de cotistas no ensino superior brasileiro confirmam que estudantes ingressantes pelas cotas não têm desempenho inferior¹, não rebaixam a qualidade do ensino e não prejudicam colegas. Em muitos casos, apresentam resultados iguais ou ligeiramente melhores², e eventuais diferenças iniciais desaparecem ao longo do curso. Outros estudos mostram que cotistas demonstram maior esforço acadêmico e não produzem externalidades negativas³.
No mercado de trabalho, o movimento é semelhante. Pesquisas mostram que jovens que ingressam pela política de cotas têm maior probabilidade de alcançar posições de liderança. E há um ponto central neste debate: cotas apenas por renda não produzem diversidade racial. Quem muda o perfil racial da universidade são as cotas raciais⁴.
Os dados do Censo 2022 trazem a confirmação mais impactante desse avanço. Em pouco mais de duas décadas, a proporção de brasileiros negros com ensino superior completo mais que quintuplicou. Entre pessoas pardas, o salto foi de 2,4% para 12,3%. Entre pessoas pretas, de 2,1% para 11,7%. Trata-se de um dos avanços sociais mais notáveis dos últimos tempos, e ele não aconteceu por acaso. Foi resultado de uma política pública, porque houve lei, porque o Estado Brasileiro decidiu abrir uma porta.
Ainda assim, quando olhamos para cursos como medicina, economia ou odontologia, vemos que essa presença ainda é mínima. A desigualdade não foi superada; ela apenas começou a ser enfrentada. Pela primeira vez, a universidade pública passou a refletir minimamente a sociedade real, e não apenas uma parte dela. Isso não é discurso. É evidência.
Interromper esse processo agora não apenas estanca o avanço. Reverte o avanço. Recoloca para fora das salas de aula uma juventude que, finalmente, havia encontrado um caminho possível.
Muito se fala em mérito. Mas o mérito só é legítimo quando parte de pontos minimamente comparáveis. Como medir mérito em um estado em que um jovem branco pode circular com tranquilidade e um jovem negro precisa apresentar diariamente provas de inocência, de pertencimento e de legitimidade? A política de cotas não produz desigualdade. Ela tenta corrigir desigualdades que antecedem a escola, a universidade e o vestibular.
É ainda mais revoltante perceber que esse debate, muitas vezes, seja reduzido à disputa ideológica. A comunidade negra de Santa Catarina não é um bloco homogêneo. Entre homens e mulheres negros há pessoas de esquerda, de direita, de centro e de ideologia nenhuma. O que os une não é o posicionamento político. O que os une é a experiência de viver sob desconfiança maior, sob risco maior e sob oportunidades menores.
Por isso lamento profundamente a decisão tomada na semana passada na Assembleia Legislativa. Ela não é apenas um retrocesso institucional. É uma recusa simbólica a reconhecer que Santa Catarina ainda produz barreiras. E toda recusa em reconhecer desigualdades tem um custo. Sem acesso à universidade, a ausência se reproduz. Sem presença negra nas formações de prestígio, menos líderes negros teremos. Sem presença negra nas carreiras, não haverá negros no Parlamento, nos tribunais, nas redações e nos conselhos profissionais.
E permanece a pergunta que ecoou no plenário da Alesc e continua a ecoar hoje: onde estão as vozes que ainda não chegam aqui?
Eliminar essas doze vagas não aproxima essas vozes do espaço público. Apenas garante que sigam do lado de fora, esperando por um Estado que, mais uma vez, escolheu não ouvi-las.
Notas:
¹Valente, R.; Berry, J. “Performance of affirmative action students in Brazilian universities” (2017).
²Francis, A.; Tannuri-Pianto, M. Estudos sobre desempenho e progressão de cotistas.
³Pelegrini, T. et al. Pesquisas sobre esforço acadêmico e impactos das cotas (2022).
⁴Vieira, P.; Arends-Kuenning, M. Estudos sobre diferenças entre cotas raciais e sociais na promoção de diversidade (2019).






