A Democracia Embriagada. Por Gonzalo Pereira

Artigo de Gonzalo Pereira, executivo de comunicação e marketing

Outro dia, no elevador do prédio onde uma vez por semana vou apertar os parafusos de minha cabeça com a ajuda de uma psicóloga, presenciei uma cena curiosa. Uma senhora, dessas que ainda usam lenço no pescoço mesmo no calor de um dia de Verão extraviado em Maio, perguntou ao neto adolescente por que ele tinha votado naquele “rapaz da internet” para representante de turma na escola. O garoto, sem tirar os olhos do celular, respondeu com simplicidade desconcertante:

“Porque ele é engraçado, vó. Posta uns memes muito bons.” A avó balançou a cabeça, murmurou algo sobre “juventude perdida” e saiu do elevador arrastando seu carrinho-sacola de feira. Fiquei ali, no décimo segundo andar, pensando que acabara de testemunhar, em miniatura, o mesmo fenômeno que tem sacudido democracias ao redor do mundo.

Quando a democracia se distorce, quem conquista a maioria não é o mais sábio, mas o que melhor alimenta os impulsos da multidão. E nunca estivemos tão expostos a esse risco quanto agora, na era em que o like substituiu o argumento e o meme virou plataforma de governo.

O Carnaval Perpétuo
A democracia, essa senhora respeitável que já viveu dias melhores, anda meio embriagada ultimamente. Cambaleando entre fake news e algoritmos viciantes, ela perdeu a sobriedade necessária para distinguir o estadista do entertainer, o projeto do espetáculo, a substância da fumaça.

Como diria Nelson Rodrigues, “subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos”. O mesmo pode ser dito sobre o desmonte de uma cultura democrática saudável. Não chegamos aqui da noite para o dia. Fomos, tijolo por tijolo, construindo uma sociedade onde a capacidade de provocar indignação vale mais que a capacidade de inspirar reflexão.

Estamos vivendo um carnaval perpétuo da política, onde a seriedade virou pecado capital e o debate profundo foi substituído pelo desfile de alegorias vazias. Quem grita mais alto, quem causa mais polêmica, quem produz o vídeo mais viral, esses são os novos semideuses do nosso panteão democrático.

A Pandemia Silenciosa
Estamos infectados por algo tão perigoso quanto o fungo Cordyceps, da série “The Last of Us”. Uma pandemia silenciosa corrói nossa capacidade de pensar criticamente. O vírus da desinformação se espalha pelos smartphones e computadores, transformando cidadãos em hospedeiros involuntários de mentiras travestidas de verdade.

Você já parou para pensar que talvez sejamos os últimos a conhecer a diferença entre um argumento bem fundamentado e um apelo emocional vazio? Os últimos a nos importarmos com isso? Enquanto cientistas políticos e filósofos debatem os meandros da teoria democrática em salas semivazias de universidades, influenciadores com milhões de seguidores moldam a opinião pública com três frases de efeito e um fundo musical dramático.

O mais assustador não é a manipulação em si; isso sempre existiu desde que o primeiro demagogo subiu numa pedra para falar à multidão. O que dá frio na espinha é como essa manipulação agora se veste com as roupas da “autenticidade”, desfila com a bandeira da “liberdade de expressão” e é reverenciada como “opinião válida”. É como se o veneno agora viesse servido no copo d’água da democracia, e todos bebêssemos com sede, achando que estamos nos hidratando quando, na verdade, estamos nos intoxicando.

O Prato Feito da Opinião
“Eu penso por mim mesmo”, diz o sujeito que repete ipsis litteris o que viu no vídeo de um minuto que o “algoritmo” selecionou para ele. Ele realmente acredita nisso. Acredita que está “formando opinião”, “exercendo cidadania”, quando na verdade está apenas consumindo um cardápio pré-selecionado, temperado para agradar seu paladar e confirmar seus preconceitos.

É como aquele amigo que jura que é chef, mas só sabe abrir latas. A opinião já vem pronta, embalada, com conservantes e realçadores de sabor emocional. “Não acredite na grande mídia”, dizem. E oferecem o quê no lugar? Um print de tela de uma mensagem anônima no Telegram? Um vídeo editado fora de contexto? Um site sem endereço, sem história, sem responsáveis identificáveis?

Platão já nos alertava sobre isso há mais de dois mil anos. Na sua crítica à democracia ateniense, ele temia exatamente o que estamos vivendo: uma sociedade onde os aduladores do povo vencem os educadores do povo. Onde o sofista triunfa sobre o filósofo. Onde a lisonja supera a verdade.

As Ruínas do Diálogo
Já tentou conversar sobre política num almoço de família? Ou discutir políticas públicas com aquele colega que “descobriu a verdade” em grupos do WhatsApp? Se sim,você conhece na pele o resultado mais tóxico dessa distorção democrática: a criação de universos paralelos, onde cada tribo tem sua própria “verdade”.

Não estamos mais discordando sobre interpretações de fatos. Estamos discordando sobre quais são os fatos. É como se metade das pessoas vivesse no Brasil e a outra metade numa versão alternativa do país que existe apenas nas suas timelines.

E o mais triste: ninguém está disposto a visitar o país do outro.
A defesa intransigente de posições políticas, mesmo após serem completamente desmascaradas, virou questão de identidade. Admitir o erro seria como trair o grupo, abandonar a família. E assim, o sectarismo, o radicalismo e o ódio crescem em escala industrial. O adversário deixa de ser um concidadão com quem discordo e passa a ser um inimigo a ser destruído.

Reimaginando a Praça Pública
Mas nem tudo está perdido. Ariano Suassuna é quem me anima: “O otimista é um tolo. O pessimista, um chato. O realista tem esperança.” E é com realismo esperançoso que devemos encarar o desafio de reimaginar nossa praça pública democrática.

Precisamos urgentemente reaprender a distinguir entre o líder que nos desafia a sermos melhores e aquele que apenas confirma nossos piores instintos. Entre o político que nos apresenta verdades inconvenientes e aquele que nos vende mentiras confortáveis. Entre o estadista que pensa no país de amanhã e o demagogo que só pensa na próxima eleição.

Isso exige de nós uma alfabetização midiática que nunca foi tão necessária. Precisamos ensinar nossas crianças (e a nós mesmos) a fazer perguntas básicas antes de compartilhar aquela notícia bombástica: Quem escreveu isso? Com base em quê? Qual a fonte original? Isso faz sentido lógico? Isso contradiz conhecimentos bem estabelecidos? Se sim, quais as evidências?

Precisamos também reabitar o espaço entre os extremos. Reconhecer que é possível criticar um político sem demonizá-lo. Que é possível discordar de uma ideia sem “cancelar” quem a defende. Que é possível ter convicções firmes e, ainda assim, estar aberto ao diálogo.

A Escolha É Nossa
Cito Drummond: “O mundo é grande e cabe nesta janela sobre o mar”. E o Brasil, este país continental de possibilidades infinitas, também cabe num futuro melhor, se escolhermos construí-lo.

A democracia, mesmo embriagada, ainda é o melhor sistema que inventamos. Mas ela precisa de cidadãos sóbrios, atentos, críticos. Precisa de gente que não se deixe seduzir pelo primeiro vendedor de ilusões que aparece com uma solução simples para problemas complexos.

Seremos nós os últimos a valorizar o debate profundo sobre o espetáculo vazio? Os últimos a escolher o estadista sobre o entertainer? Os últimos a preferir a verdade inconveniente à mentira reconfortante?

Ou seremos os primeiros de uma nova geração, mais consciente, mais crítica e mais comprometida com uma democracia saudável? A resposta não está só nas urnas. Ela está, antes disso, no botão de compartilhar que você decide apertar ou não. Está no vídeo que você escolhe assistir até o fim. Está na conversa difícil que você decide ter em vez de cortar relações. Está na sua disposição de ouvir aqueles que pensam diferente de você.

“Caminhando e semeando, no fim terás o que colher”, ensina Cora Coralina. Que possamos semear hoje uma democracia mais saudável para colher, amanhã, um Brasil à altura dos nossos sonhos.

A democracia embriagada pode se recuperar. Massó se nós,seus cidadãos, decidirmosser a água e não o álcool.

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