A insustentável leveza do personagem político

Por Guto Araujo, uma resposta ao artigo “O poder discreto da Intimidade” de Marcello Natale

Talvez exista um código invisível entre aqueles que dividem a intimidade de um mesmo tema. Eu, como parceiro profissional de um dos maiores talentos do marketing digital do país, não pude deixar passar em branco o inspirador artigo da semana nessa ilustríssima coluna. Afinal, o ar que respiramos nesse ecossistema, já está abarrotado de partículas digitais políticas. E essa inspiração se encaixou como uma luva num pensamento que venho desenvolvendo em artigos e palestras. 

Sabemos que a ponta de um iceberg representa 10% de seu tamanho, enquanto a parte submersa representa 90%. Na comunicação política, acontece algo parecido. Os profissionais envolvidos na sua estratégia, operação e produção – publicitários, jornalistas, dirigentes partidários, amigos, familiares, “gênios da comunicação”, assessores, cientistas políticos, analistas de pesquisa e de debates, “magos da internet”, sumidades, milagreiros e palpiteiros em geral, representam os 10% da ponta do iceberg. Eos eleitores? Esses seriam os 90% submersos, os que definirão todo o processo. É claro que, para conquistar essa massa que decide, é preciso primeiramente um personagem político com reputação, vontade, apoio, estrutura partidária, reconhecido pela midia e pela imprensa e que tenha condições de contratar trabalho de comunicação bem-feito, com diagnóstico baseado em dados, pesquisa, inteligência e criatividade. Um trabalho permanente. Assim, quando se chega numa eleição, com a mensagem e a reputação consolidadas, a campanha passa a ser um processo estrategicamente mais assertivo.

O fenômeno dos políticos de sucesso nas redes se reproduz no Brasil com excelência, seja inspirado por cenários internacionais, como a campanha presidencial norte-americana de 2024, ou pelos atores políticos internos que angariam fãs, seguidores, likes e votos. Nomes como Topázio Neto, Nikolas Ferreira, Pablo Marçal, João Campos, André Fernandes, André Janones e Rodrigo Manga tornaram-se referências nacionais de como se obter sucesso nas redes sociais.

No entanto, seguir fielmente a forma e o conteúdo desses personagens não é exatamente repetir uma fórmula de sucesso, está mais para pura ansiedade. Encontrar a narrativa certa para um personagem político depende também de dados concretos de pesquisa e muitos testes para encontrar o encaixe perfeito. Ainda assim, mesmo quando se acha o caminho, é preciso estar conectado ao fenômeno que o pesquisador e autor Martin Gurri chama de “fluxo”, ou seja, não é só a forma pura, o resultado daquele vídeo com muitos likes que faz a diferença, mas tudo que está no entorno desse personagem e levou à criação daquela narrativa. Para isso, é preciso fazer uma escuta ativa e constante, funcionar como um grande radar para captar rapidamente as mudanças de humor nas redes, perceber novas narrativas, interpretar modismos, remixar e devolver o conteúdo ao público de maneira única integrada e coerente, preservando a identidade real do personagem político.

Em suma, não basta copiar a fórmula da juventude de outro personagem para ganhar mais likes. Hoje, é crucial que a originalidade se sobreponha a outras características, tomando distância das performances copiadas, fakes, armadas e artificiais. A eficácia da comunicação não pode ser refém da reprodução de tendências, memes ou modismos. 

Cada evolução tecnológica da sociedade é acompanhada por uma transformação na própria sociedade que a criou, pois seguir expandindo seus domínios de todas as maneiras é uma questão inata aos seres humanos. O século XXI trouxe essa evolução a níveis realmente impressionantes até a criação e uso cada vez maior da Inteligência Artificial. Agora, não há mais limites. 

A política não escapa a essa lógica. Com o boom das redes sociais, ela vai se transformando numa espécie de “política-entretenimento”, mais voltada para uma estética supostamente “engraçadinha” do que para o aprofundamento sobre conteúdos essenciais às melhorias da sociedade. Atingir os 90% do iceberg passa a ser uma disputa por espaços afetivos na percepção do eleitor, muito mais do que o espaço de debates de ideias e soluções. A análise se torna mais complexa ainda ao percebermos que a grande massa submersa é dividida em bolhas que reproduzem suas próprias versões da realidade, fragilizando o espaço democrático, o espaço comum. Compreender a mudança de parâmetros nesse novo ecossistema de eleitores é essencial para produzir e renovar as peças dessa engrenagem. 

 “O espaço digital não é mais um território onde basta exibir sinais superficiais de juventude para conquistar credibilidade. Ao contrário, nesse espaço, a autenticidade se torna mais valorizada, e qualquer tentativa artificial ou impostura é rapidamente exposta e ridicularizada”. Assim, Martin Gurri estabelece o espaço digital como o campo orgânico em que as ideias e emoções encontram seus interlocutores e suas bolhas de interação. Marcello Natale vai mais fundo, para ele não é o campo que define as relações, essas são definidas pela vocação humana em se relacionar, por isso ele diz que “a intimidade é o recurso escasso do nosso tempo. Pode levar mais tempo. Exige mais verdade”. E essa é a construção diária feita com a matéria prima invisível que invade nossas casas pela tecnologia. Ele completa:  “Pede mais trabalho invisível. Mas é o único caminho que faz sentido quando a política resolve, enfim, voltar a viver onde as pessoas vivem. Dentro do cotidiano. Ao alcance da voz. No mesmo plano onde a vida acontece”. Marcelo percebe o “plano” da realidade como indissociável daquilo que somos, sentimento humano primordial. E sim, o “espaço digital” de Gurri está aqui, mas antes dele tem seus criadores.

Voltando à estratégia, gosto de pensar que para que a estrutura real/digital funcione sincronizada como arco e flecha, o arco deve ser construído com antecedência, com base em dados, diagnóstico, planejamento, comunicação sistêmica constante. Na flecha estão todos os elementos sensíveis e humanos que devem ser cuidados e dosados diariamente, os que conquistam no primeiro impacto. Os que acertam hoje mantêm coerência, autenticidade e conexão com a grande massa de eleitores que, como vimos, é orgânica, se atualiza, alterna seus desejos e forma de pensar e atuar. E operando tudo isso tem é claro, um ser com inteligência e pensamento crítico.

Concluindo, amigo Marcello, no novo cenário é vital enxergar além do horizonte. Numa democracia verdadeira, entre algoritmos e afetos quem sustenta e destrói um projeto político é a grande massa. Sem ela, um projeto político não para em pé, muito menos seu protagonista. E concordo, a conversa continua amanhã, será um prazer. 

Guto Araujo é Publicitário com especialização em estratégia de comunicação e marketing, growth hacking e artes visuais. Atua em marketing político e comunicação de governo desde 1998. Colaborou em 6 campanhas presidenciais no Brasil e América Latina, além de outras para governos estaduais e prefeituras para PP, MDB, PSDB, PT, DEM e Solidariedade.

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