A Política de Vidro: Como viramos eleitores de nós mesmos. Por Alisson Magalhães

Artigo de Alisson Magalhães, pastor, estrategista e especialista em Marketing Político

O futuro não chegou — ele escorreu pela tela do celular. E enquanto ninguém percebia, trocamos a praça pública pelo feed, o debate pelo algoritmo e a política pela performance. Viramos personagens de nós mesmos, moldados por plataformas que não pedem opinião: elas a fabricam. A cena de Black Mirror em que Lacie treina o sorriso perfeito diante do espelho não parece mais ficção científica; parece um documentário sobre a atual geração. Ela treina o gesto porque sabe que cada movimento rende ou rouba uma estrela. Exatamente como nós, que calibramos cada opinião, cada foto e cada frase para agradar uma plateia invisível que carrega nossos humores no bolso.

É por isso que chamo este fenômeno de política de vidro: um país que não olha mais para a realidade, apenas para o reflexo que construiu na tela. As democracias sempre viveram de tensão, mas nunca houve algo tão corrosivo quanto a lógica das plataformas, que fragmentam, aceleram, polarizam, premiam o extremo e descartam o nuance. O eleitor não é mais convencido, é condicionado. O adversário não é mais um discordante, é um inimigo. A política não é mais disputa de ideias; é disputa de impulsos e preferências. E o mais assustador é que as campanhas perceberam. Marqueteiros já não perguntam “qual é sua proposta?”, mas “o que engaja?”. Partidos deixaram de formar opinião para capturar atenção. Candidatos não falam mais com o país, mas com microgrupos invisíveis, moldados em laboratório por IA generativa.

Nicholas Carr já havia alertado para esse movimento quando escreveu que a internet estava treinando nossa mente para a superficialidade. E, em política, superficialidade é veneno. Uma sociedade incapaz de sustentar foco não consegue ler um programa de governo, entender uma política pública ou refletir sobre o coletivo. O eleitor não vota mais pelo futuro, vota pelo estímulo mais recente. Hoje, um candidato vale tanto quanto seu último vídeo de 15 segundos. Entre competência e carão, o feed escolhe o carão e conduz o voto pela identificação, não pela capacidade.

E o mesmo movimento que fez o debate virar ruído, está levando a democracia a virar tribalismo. O Brasil não vive mais em um país, mas em dezenas de micronarrativas paralelas. O amigo (mesmo se for um amigo de infância) que discorda é cancelado. O parente que pensa diferente é bloqueado. O adversário que critica vira “lacrador” ou “odiador”. Não enxergamos mais pessoas, enxergamos avatares, rótulos, embalagens ideológicas. Michael Norton chamou isso de “cascatas de dessemelhança”: quanto mais descobrimos superficialmente sobre alguém, mais motivos encontramos para rejeitá-lo. E nenhuma democracia sobrevive quando o diálogo se torna impossível e o inimigo, indispensável.

Mas o ponto mais delicado ainda está por vir: a manipulação eleitoral perfeita. Se a internet molda nossa cabeça, a política aprendeu a moldá-la mais rápido. Hoje é possível enviar mensagens diferentes para eleitores diferentes, estimular medos sob medida, amplificar radicalismos, enterrar fatos inconvenientes e fabricar climas eleitorais artificiais com precisão cirúrgica e análises perfeitas. O eleitor acha que está “despertando”, mas está apenas clicando exatamente onde o algoritmo queria que ele clicasse. A tecnologia não está só distorcendo o debate. Com o advento da I.A., ela ganhou a capacidade de distorcer a própria percepção da realidade. E quando cada um vive dentro da sua própria realidade, a democracia deixa de existir como projeto comum. Isso não é futuro. Isso já acontece hoje.

No fim das contas, o perigo maior não é sermos enganados pelo algoritmo, é sermos transformados por ele. Não é estarmos conectados demais, mas profundamente desconectados de tudo que não cabe na tela. Não é a polarização em si, mas a convicção infantil de que somos livres enquanto obedecemos às recomendações de um software que decide o que vemos, com quem falamos e até o que sentimos. E o aviso final é simples, quase bíblico: se você não decide como usa a tecnologia, a tecnologia decide como vai usar você. Simples assim. E quando a democracia começa a se comportar como um feed, ela inevitavelmente passa a ser governada como um feed.

A política de vidro não quebra de uma vez; ela trinca aos poucos, a cada vício de atenção, a cada desinformação compartilhada, a cada bolha alimentada, a cada nuance abandonada, a cada cidadão que vira avatar. E quando finalmente estilhaça, não é o país que some. Somos nós, incapazes de enxergar uns aos outros. Nesse ponto, não existirá mais esquerda nem direita, apenas milhões de reflexos isolados, cada um acreditando que votou livremente quando, na verdade, virou apenas eleitor de si mesmo, classificado em algum limbo infinito entre os espectros que, antes, ajudavam a construir um país. Quando isso acontecer, ninguém vai ter mais o que curtir.

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