A quem interessa cortar as cotas? Por Bernadete Quadro Duarte

Artigo de Bernadete Quadro Duarte, é administradora, mestra em Administração Universitária pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e servidora pública federal aposentada. Atua em conselho comunitário em Florianópolis, com envolvimento em políticas públicas, inclusão social e participação cidadã

Como o fim das cotas ajuda a explicar a ausência de pessoas negras na Assembleia Legislativa e em outros cargos de poder

Cortar as cotas não é uma decisão neutra nem um ajuste técnico. Trata-se de uma escolha política que define quem terá acesso às universidades públicas, aos concursos públicos e, consequentemente, aos espaços de poder e decisão no Estado.

Em Santa Catarina, a proposta de retirada das cotas raciais avança sem a apresentação de dados consistentes que comprovem seu fracasso ou desnecessidade. Ao contrário, as políticas de ação afirmativa demonstraram resultados positivos no acesso e na permanência de estudantes negros no ensino superior, tanto no cenário nacional quanto no estadual.

Dados do IBGE indicam que pretos e pardos representam mais de 56% da população brasileira, mas seguem subrepresentados no ensino superior e, de forma ainda mais acentuada, nos cargos de comando e decisão. Essa desigualdade não decorre de falta de esforço individual, mas de uma herança histórica de exclusão que atravessa gerações.

Ao discutir quem ocupa os espaços de maior prestígio social, é impossível ignorar que, durante o debate, a manifestação de uma parlamentar no plenário da Assembleia Legislativa de Santa Catarina evidenciou um dado incontestável: a ausência de parlamentares negros naquele espaço. Essa ausência não é casual. Ela revela como o acesso desigual à educação e às oportunidades molda, ao longo do tempo, quem chega — e quem nunca
chega — aos espaços de poder.

Quando as cotas raciais são retiradas, as vagas não desaparecem. Elas passam a ser ocupadas, de forma previsível, por estudantes brancos, de maior renda, majoritariamente oriundos de escolas privadas, que tiveram acesso a melhores condições de ensino, cursinhos preparatórios e redes de apoio. O resultado não é neutralidade, mas a recomposição do perfil histórico das universidades e dos concursos públicos.

Esse efeito se projeta diretamente sobre quem ocupará, no médio e longo prazo, os cargos públicos e os espaços de decisão do Estado. Ao restringir o acesso de pessoas negras às universidades e aos concursos, reproduz-se um ciclo em que gestores, técnicos de alto escalão, magistrados e parlamentares continuam sendo recrutados a partir de um mesmo perfil social e racial — o que ajuda a explicar por que a Assembleia Legislativa permanece
sem representatividade negra.

As cotas raciais não criam privilégios. Elas funcionam como um mecanismo corretivo diante de desigualdades estruturais profundas. Retirá-las significa aceitar como natural um sistema que seleciona sempre os mesmos grupos para ocupar posições estratégicas.

É historicamente desonesto usar a trajetória de Antonieta de Barros para atacar as políticas de cotas, como se sua experiência pudesse ser lida à luz das condições institucionais de hoje. Antonieta viveu em um período em que o Estado não garantia educação pública universal, nem existiam universidades acessíveis, concursos públicos democratizados ou qualquer política de inclusão. A escola que ela criou não era uma política pública, nem um mecanismo de seleção para disputar vagas estatais; era uma iniciativa comunitária e pedagógica de resistência em um contexto de exclusão quase total. O fato de sua escola não adotar cotas raciais ignora completamente essa diferença histórica. Comparar essa experiência com o debate atual sobre ingresso em universidades e concursos é deslocar o sentido histórico de sua luta.

Há, ainda, um componente ideológico camuflado no discurso do fim das cotas. Ao apresentá-lo como técnico ou meritocrático, esconde-se um projeto de manutenção de poder. As cotas são atacadas não porque fracassaram, mas porque começaram a alterar, ainda que timidamente, a composição social dos espaços de decisão.

Cortar as cotas, portanto, não é discutir mérito. É decidir quem pode acessar oportunidades e quem continuará distante dos lugares onde se definem políticas, orçamentos e rumos do Estado. A pergunta permanece: a quem interessa cortar as cotas?

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