Além da serra: a produção de vinhos finos em Tangará

Se você acompanha minimamente a cena do vinho brasileiro, já deve ter ouvido falar da serra catarinense. Vinhos de altitude, boa amplitude térmica, produção em crescimento… São Joaquim virou sinônimo de terroir e selfie com taça. 

Mas o fato é que tem muito mais vinho sendo feito em Santa Catarina fora desse radar turístico. Esse é o tema da nossa nova série “Vinho além da serra” aqui na coluna Bea Cave.

Hoje, a parada é em Tangará, no meio-oeste catarinense. Uma cidade com menos de 10 mil habitantes, onde a cultura do vinho se mistura à história da imigração italiana.

Quem me contou essa história foi Estefânia Panceri, diretora-geral da vinícola e representante da terceira geração da família à frente do negócio. Publicitária de formação, ela é também especialista em marketing estratégico e tem certificação WSET 3, uma das mais reconhecidas na área de vinhos. Com entusiasmo, Estefânia falou sobre os desafios, as viradas e as decisões que moldaram o projeto da família ao longo dos anos.

Também experimentei alguns vinhos feitos por eles e conto aqui o que achei.

Antes, um contexto para entender por que Tangará merece atenção

Talvez você não conheça o Vale do Rio do Peixe, mas essa é – veja só – a região que mais produz vinhos em Santa Catarina, com cerca de 2.300 hectares cultivados. Para se ter uma ideia, a região dos Vinhos de Altitude, na serra, soma cerca de 300 hectares cultivados.

Localizada no meio-oeste do estado, inclui cidades como Tangará, Videira, Fraiburgo, Pinheiro Preto e Caçador, todas com forte influência da imigração italiana. Ali começou a cadeia vitivinícola catarinense, muito antes da serra virar estrela.

Mas atenção: a maior parte dos vinhedos desta região se destina à produção de uvas americanas ou híbridas, como Isabel, Bordô e Niágara, para produção de suco de uva ou para os chamados vinhos de mesa: aqueles muitas vezes vendidos em garrafão (mas não apenas), com aromas e sabores mais rústicos e sem complexidade.

Já os vinhos finos, aqueles produzidos a partir de uvas vitis vinifera (como Cabernet Sauvignon, Merlot, Chardonnay…), só começaram a ganhar espaço por ali mais recentemente.

A vinícola Panceri é uma das que começou com o foco na produção de uvas de mesa e hoje dedica cerca de 35% de seu vinhedo à produção de vinhos finos. Sediada em Tangará, tem 10 hectares de videiras plantadas que rendem 250 mil litros de vinhos por ano. Deste total, 50 mil litros são de vinhos finos – cerca de 67 mil garrafas por ano – e um portfólio que inclui 17 rótulos entre espumantes, brancos, rosés e tintos.

A transição do vinho de mesa para os vinhos finos

“Ninguém pensava em vinhos finos por aqui”, contou Estefânia, enquanto lembrava as origens da vinícola fundada por seu avô, Nilo Panceri, no início dos anos 90, em parceria com os filhos Celso Panceri e Luiz Panceri.

A produção da família começou como tantas outras da região: com uvas americanas e vinhos de mesa, vendidos a granel ou engarrafados no estilo colonial. Isabel, Bordô e Niágara eram as variedades mais comuns – vinhos simples, com produção robusta.

A virada veio em 1994, quando os vinhos da casa começaram a conquistar prêmios estaduais. “Foi aí que começamos a imaginar outras possibilidades”, conta Estefânia. A curiosidade aumentou, a Epagri – Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina – começou a testar novas variedades em regiões mais altas e, aos poucos, a família se convenceu de que dava pra ir além.

No fim da década de 1990, começaram os testes com uvas viníferas. “Era tudo muito incipiente, experimental mesmo”, diz. A vinícola chegou a cultivar diversas variedades, mas hoje mantém foco em Merlot, Sauvignon Blanc e Moscato — as que melhor se adaptaram ao clima e aos desafios da região. Outras uvas, como Cabernet Sauvignon e Glera, continuam no portfólio, mas com matéria-prima comprada da Campanha Gaúcha.

Parte da família Panceri, responsável pela vinícola: Celso, a esposa Diva e as filhas Estefânia e Emanuela

E os vinhos, afinal?

Hoje, a Panceri tem 17 rótulos de vinhos finos em seu portfólio, entre tintos, brancos, rosés e espumantes, sob responsabilidade do enólogo Eliandro Polli, técnico em Enologia pelo CEFET de Bento Gonçalves e mestrando em Viticultura e Enologia no IFSC de Urupema.

Os vinhos da Panceri têm inúmeras medalhas de reconhecimento em concursos nacionais e internacionais e este ano, três vinhos da vinícola receberam medalha de ouro no Concurso do Espumante Brasileiro 2025: o Brut Charmat, o Moscatel e o Panceri Edição Especial 30 anos, espumante que comemora o aniversário da vinícola – feito com Sauvignon Blanc e incríveis 84 meses de autólise.

Entre os tintos, vale mencionar dois vinhos já maduros e muito representativos da trajetória da vinícola: o Reserva Cabernet Sauvignon 2005 e o Reserva Merlot 2017 – ambos em comercialização atualmente.

Provei o Altos 2015, um blend de Cabernet Sauvignon e Merlot. No nariz, aparecem notas de especiarias e um mentolado muito agradável. Em boca, frutas vermelhas e negras, como cereja e amora.

Provei também o Prosecco Brut, feito com a uva Glera. Um espumante leve, fácil de beber, ideal para começar uma refeição com leveza.

Vale citar ainda o Rosé Fumé, um rótulo curioso feito com Merlot e seis meses de passagem por barricas de carvalho francês e americano de terceiro e quarto uso. Segundo Estefânia, ele nasceu de forma quase despretensiosa: “as barricas estavam disponíveis, precisavam ser ocupadas, e pensamos: por que não?” A aposta deu tão certo que hoje o vinho faz parte do portfólio fixo da casa.

Um museu, um piquenique e o vinho como experiência

Apesar de estar fora das rotas turísticas mais populares, a Panceri recebe cerca de 3 mil visitantes por ano. “Receber as pessoas aqui virou a melhor forma de conhecer o gosto de quem consome nossos vinhos”, resume Estefânia, ao falar do enoturismo como estratégia de conexão com o consumidor final. 

“Em uma região onde muitos municípios têm menos de 10 mil habitantes, esse movimento é significativo. Tem gente que vem pelo vinho, claro. Mas tem muita gente que vem pelo momento: sentar no gramado, sentir o ar puro, fazer um piquenique, caminhar entre as videiras, tirar fotos”, destaca. 

Outra parte do charme da visita está no Museu da Vitivinicultura Catarinense, que funciona ao lado da vinícola. A ideia nasceu do tio de Estefânia, Luiz Panceri, que começou a coletar peças antigas em viagens como caminhoneiro. Com apoio do governo estadual, o museu foi ampliado em 2006 e hoje reúne mais de 400 peças, oferecendo um mergulho nas origens da cultura da uva no estado.

O futuro do vinho em Tangará

Quando perguntei o que motiva a família a seguir investindo em vinho numa região ainda pouco conhecida, Estefânia respondeu sem hesitar:

“A gente acredita no vinho. No poder que ele tem de reunir, celebrar, marcar momentos. Colocamos nosso nome no rótulo porque acreditamos nisso.”

O entusiasmo é evidente, mas ela também reconhece os desafios. A distância dos grandes centros e a menor infraestrutura de turismo dificultam o crescimento mais acelerado. “Falta apoio público, incentivo à hotelaria e gastronomia”, diz. Mesmo assim, o otimismo prevalece:

“O consumidor de vinho é curioso, está sempre buscando algo novo. Nosso papel é oferecer algo verdadeiro, com identidade. Fugir do óbvio e daquilo que todo mundo já conhece pode surpreender.”

Beatriz Cavenaghi é jornalista, doutora em Gestão do Conhecimento pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e sommelière pela Associação Brasileira de Sommeliers (ABS-SC). @beacavenaghi no Instagram

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