Ceia silenciosa: O impacto invisível de passar o Natal no mesmo ambiente que o abusador

Atenção: Este conteúdo aborda temas sensíveis como abuso sexual. Se você ou alguém que você conhece precisa de ajuda, denuncie pelo Disque 100 ou procure o CVV (188). Você não está sozinho(a).

Patrícia* tinha apenas 6 anos quando a percepção do mundo mudou. O que deveria ser um toque de afeto revelou-se uma invasão que ela, ainda criança, não conseguia nomear, mas que o seu corpo já sentia. Durante oito anos, o calendário de dezembro, que para outros brilhava em vermelho e luzes, para ela tornava-se uma paisagem cinza.

Aos 18 anos, Patrícia decidiu romper o silêncio de portas fechadas. No entanto, encontrou um obstáculo tão devastador quanto o próprio abuso: a negação familiar. O silêncio foi imposto como regra, e ela foi obrigada a continuar dividindo a mesa com seu agressor. Hoje, aos 30 anos, as marcas daquela infância interrompida aos seis ainda vibram em seu sistema nervoso.

Patrícia não está sozinha. De acordo com os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2024) e boletins do Ministério da Saúde, o cenário da violência sexual no Brasil revela uma realidade alarmante: cerca de 82,7% dos abusos contra crianças e adolescentes ocorrem dentro da própria residência da vítima, sendo que, em mais de 75% dos casos, o agressor é um familiar ou pessoa de extrema confiança, como pais, padrastos, tios ou avós. O grupo mais vulnerável concentra-se na faixa de 0 a 13 anos, com um pico de incidência entre os 10 e 13 anos, mas a gravidade do problema é ainda maior devido à subnotificação, já que o Ministério da Saúde estima que para cada caso registrado, outros 10 a 20 permanecem ocultos, protegidos pelo “silêncio familiar” que garante a impunidade do abusador.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024 (que apresenta os dados consolidados do ano de 2023), o Brasil registrou o maior número da história: 83.988 vítimas de estupro e estupro de vulnerável. Foto: Unsplash/Divulgação

A história da vítima não é um caso isolado de “desconforto emocional”; é um fenômeno estudado pela neurociência. Pesquisas como a da Universidade de Barcelona (Pereda & Gallardo-Pujol) mostram que o abuso continuado altera a estrutura cerebral. Quando Patrícia sente o tremor nas mãos ao ver o agressor se servir à mesa, ou ao ouvir perguntas invasivas sobre sua vida, é a sua amígdala cerebral disparando um alerta de sobrevivência.

Para o cérebro de uma vítima, o agressor é um “predador” permanente. Mesmo que os anos passem, a proximidade física reativa o Eixo HPA, inundando o sangue de cortisol e adrenalina. O tremor relatado por Patrícia é a resposta física de um organismo que está em estado de choque, tentando decidir entre lutar, fugir ou, como acontece na maioria dos casos familiares, congelar.

A constatação foi feita por dois cientistas e publicada em 2011 na revista Gaceta Sanitaria, Vol. 25, Núm. 3. Os cientistas são Noemí Pereda, uma das maiores autoridades mundiais em vitimologia, atuando como consultora da Organização Mundial da Saúde (OMS) e liderando o principal grupo de pesquisa em violência infantil da Universidade de Barcelona. Ao seu lado, David Gallardo-Pujol, renomado especialista em psicobiologia e genética do comportamento, coordena estudos de ponta sobre como o ambiente de trauma altera de forma permanente a arquitetura genética e cerebral dos jovens.

Segundo a psicóloga Malu Zapelini, a violência sexual dentro da família ou praticada por pessoas próximas causa impactos profundos e duradouros no cérebro de crianças e adolescentes.

“Isso ocorre porque o cérebro ainda está em desenvolvimento e aprende sobre segurança, afeto e proteção a partir das relações familiares”, explica.

Para a Psicologia Cognitivo-Comportamental, essa experiência disfuncional contribui para a formação de crenças desadaptivas que podem acompanhar a pessoa por toda a vida, como a sensação constante de insegurança, culpa, desvalor pessoal e dificuldade de confiar nos outros.

A pesquisa de Pereda e Gallardo-Pujol reforça que a convivência forçada com o abusador em eventos familiares é uma forma de re-traumatização. Quando a família ignora o ocorrido, ocorre o chamado “Trauma de Traição”, gerando um conflito exaustivo para o cérebro, que tenta conciliar a necessidade de pertencer ao grupo com o instinto básico de proteção.

O cansaço extremo que Patrícia sente após esses encontros é o que a ciência chama de exaustão alostática. O corpo gasta tanta energia mantendo uma “fachada” de normalidade diante de uma ameaça biológica que o sistema imunológico e físico entra em colapso.

A história de Patrícia revela que o abuso não termina quando o ato cessa. Ele continua em cada ceia onde o agressor é convidado a sentar-se à mesa. Reconhecer que essas feridas são biológicas e reais é o primeiro passo para validar a dor de milhares de sobreviventes e entender que o silêncio nunca é neutro; ele tem um custo físico para quem foi vitimado.

Consequências no cérebro

  • O Encolhimento do Hipocampo: O excesso de cortisol (hormônio do estresse) acaba por danificar neurônios no hipocampo, a área responsável pela memória. Isso explica por que vítimas podem ter lapsos de memória ou “brancos” ao tentarem relatar o trauma.
  • O Alarme Quebrado: A amígdala, centro do medo no cérebro, torna-se hiperativa. Para Patrícia, o agressor é um “predador permanente”. Sua presença reativa o sistema de alerta instantaneamente, disparando o coração e causando tremores, independentemente da vontade dela.
  • A Falha no Comando: O estudo aponta uma redução na massa cinzenta do córtex pré-frontal, área que regula as emoções e a lógica. Sob estresse, o lado racional é “sequestrado”, o que pode causar o fenômeno do congelamento, onde a vítima perde a capacidade de reagir ou gritar.

O trabalho do Dr. Bruce Perry, renomado psiquiatra do Texas Children’s Hospital, apresenta uma das evidências mais impactantes da neurociência: o trauma não é apenas um sentimento, é uma lesão física.

Através de tomografias, ele comparou o cérebro de duas crianças de 3 anos e revelou que aquela que sofreu negligência extrema tinha um cérebro significativamente menor. O estudo aponta duas consequências graves:

  • Atrofia Cortical: O cérebro da criança traumatizada tem menos massa cinzenta e “buracos” (ventrículos) maiores. Isso é semelhante ao que se vê em idosos com Alzheimer, mas ocorre no início da vida, prejudicando a inteligência e a memória.
  • Estresse Tóxico: Enquanto o estresse normal nos ajuda a crescer, o trauma é como “viver no meio de uma rua com um caminhão vindo em sua direção”. Esse estado de alerta inunda o cérebro com cortisol, que destrói as conexões do hipocampo (emoção e memória).

Em suma, Perry prova que, sem afeto e segurança, o cérebro “encolhe” e se molda para a sobrevivência, tornando extremamente difícil para o adulto formar vínculos saudáveis ou se sentir seguro em ambientes familiares.

O que fazer então?

A psicologa Malu Zapelini explica que a convivência com o abusador, especialmente em datas simbólicas e familiares como o Natal, pode reativar memórias traumáticas, intensificar sintomas psicológicos e agravar o sofrimento emocional.

“Podemos assim afirmar, pela ótica dá saúde mental que não é saudável nem recomendado que a vítima seja exposta novamente a quem foi responsável pela violência. O afastamento, quando possível, é uma forma legítima de proteção e de sobrevivência emocional”, diz. E reitera:

“A psicoterapia tem um papel fundamental nesse processo, pois possibilita a ressignificação do trauma, a reorganização das memórias traumáticas e a reconstrução da sensação de segurança, ajudando a pessoa a retomar o controle da própria história. Romper o silêncio e validar a dor da vítima são passos essenciais para a recuperação psicológica”, finaliza.

Se você se identificou com a história de Patrícia ou se vive uma situação de violência agora, entenda: a culpa nunca é sua e o seu corpo tem o direito de ser protegido. No Brasil, você pode e deve buscar ajuda pelos seguintes canais:

  • Disque 100: O principal canal para denunciar violações de Direitos Humanos, especialmente contra crianças e adolescentes. Funciona 24h e a denúncia é anônima.
  • Ligue 180: Central de Atendimento à Mulher. Oferece escuta, orientação e direcionamento para serviços de proteção e saúde.
  • Conselho Tutelar: No caso de menores de idade, é o órgão responsável por retirar a criança da situação de risco e garantir seus direitos.
  • Delegacias Especializadas (DEAM ou DDP): Procure a Delegacia da Mulher ou a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente para registrar o Boletim de Ocorrência. Se não houver uma especializada na sua cidade, qualquer delegacia comum deve fazer o atendimento.
  • Saúde e Acolhimento: Procure um hospital ou posto de saúde. Você tem direito ao atendimento médico de emergência, profilaxia contra ISTs e, principalmente, acompanhamento psicológico pelo SUS para tratar as sequelas cerebrais que discutimos.

*Patrícia é um nome fictício para manter a identidade da vítima preservada.

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