Cinco anos de omissão: até quando Florianópolis vai ignorar a violência contra as mulheres? Por Carla Ayres

Por Carla Ayres, vereadora do PT em Florianópolis

Como podemos desenvolver políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres se não sabemos quantas, onde e de que forma essas violências ocorrem na nossa cidade? Essa pergunta segue sem resposta concreta por parte da Prefeitura de Florianópolis. E é com indignação que, cinco anos após a sanção da Lei nº 10.715/2020 — de minha autoria — venho a público denunciar a omissão do Executivo Municipal em não implementá-la.

A referida lei institui o Dossiê Mulher Florianopolitana, uma ferramenta voltada à sistematização e divulgação de dados sobre violências de gênero na capital catarinense. Apesar de sancionada, a legislação segue ignorada pela Prefeitura. Esses dados são essenciais para orientar políticas públicas eficazes e territorializadas. No entanto, a gestão municipal tem optado pelo silêncio e pela inércia diante de uma realidade alarmante.

Uma lei nunca cumprida pela gestão municipal

O Dossiê Mulher Florianopolitana, sancionado pelo então prefeito Gean Loureiro, deveria ser publicado anualmente, reunindo informações sobre os tipos de violência sofridos por mulheres atendidas pelos serviços públicos municipais, com metodologia padronizada e acesso garantido por meio do Diário Oficial e do site da Prefeitura. No entanto, passados cinco anos, nenhum relatório foi produzido. Neste momento, já deveríamos estar na quinta edição do dossiê e contar com subsídios suficientes para a elaboração de políticas públicas concretas capazes de enfrentar a violência contra as mulheres — uma realidade que segue estampando as páginas dos jornais recorrentemente.

Diante da omissão do Executivo, nosso mandato acionou a Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina, que passou a acompanhar o caso por meio do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM). A partir de 2021, o NUDEM iniciou cobranças formais à Prefeitura pela criação de um grupo de trabalho para a implementação da lei. Esse grupo só foi formalizado em maio de 2022, mas realizou poucas reuniões, sem encaminhamentos efetivos, sendo paralisado por conta de descontinuidade institucional e mudanças internas na gestão.

Em 2023, nosso mandato manteve diálogo com a recém-criada Assessoria de Políticas Públicas para Mulheres e Igualdade de Gênero, reiterando a urgência da regulamentação e aplicação da lei. Ainda assim, nenhuma medida concreta foi tomada.

Já em 2024, no Dia Internacional da Mulher, apresentamos uma denúncia formal à Procuradoria Especial da Mulher da Câmara Municipal, apontando o descumprimento da legislação e a negligência do município diante da violência de gênero. Em novembro do mesmo ano, o Ministério Público de Santa Catarina instaurou um procedimento administrativo e solicitou informações sobre o grupo de trabalho responsável pela elaboração do Dossiê. Após essa ação, o GT foi reativado — ainda sem uma nova composição. Novamente, não houve qualquer resultado prático.

Não se trata de um problema técnico. O que falta é vontade política. Ao ignorar essa lei, a gestão municipal não apenas descumpre uma obrigação legal: compromete diretamente a segurança e a vida das mulheres. É inadmissível que Florianópolis, com toda sua estrutura e capacidade institucional, continue tratando com descaso uma legislação essencial para orientar políticas públicas de proteção.

Faltam políticas, sobram evidências

A ausência de estatísticas confiáveis não é mero descuido — é uma escolha política. Sem informações organizadas, as vítimas são invisibilizadas, a rede de proteção fica comprometida e ações coordenadas entre saúde, educação, assistência social e segurança pública tornam-se inviáveis.

Os números falam por si: de acordo com o Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (RASEAM 2025), 21,4 milhões de mulheres brasileiras — 37,4% da população feminina com 16 anos ou mais — sofreram algum tipo de agressão nos últimos 12 meses, o maior índice desde 2017. A violência física atingiu 18,9% das entrevistadas, e o abuso sexual foi relatado por 10,7%. Apenas em 2024, foram registrados 1.450 feminicídios no país (média de quatro por dia) e 71.892 casos de estupro — ou seja, aproximadamente 196 por dia.

Em Santa Catarina, a situação também é alarmante. Segundo o Ministério das Mulheres, somente em 2024 a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 registrou 17.185 atendimentos no estado, um aumento de 15,5% em relação ao ano anterior. As denúncias subiram 12,3%, passando de 3.568 para 4.029.

Auditoria do Tribunal de Contas do Estado (TCE/SC), publicada em abril de 2025, revelou que os registros de violência contra mulheres aumentaram de 56.054 em 2019 para 120.611 em 2023, com os maiores índices nas regiões do Vale do Itajaí, Serra e Grande Florianópolis. A mesma auditoria constatou que nenhum Centro de Apoio Especializado foi efetivamente implantado pelo Governo do Estado.

Dados do Observatório da Violência Contra a Mulher de SC mostram outro indicativo da gravidade da situação: o número de registros saltou de 65.364 em 2020 para 74.510 em 2024 — crescimento de quase 14%. O Observatório oferece painéis com informações por tipo de crime, perfil das vítimas e agressores, além da distribuição geográfica e evolução temporal.

Diante desse cenário, Florianópolis não pode mais fingir que enfrenta a violência enquanto sabota os instrumentos necessários para compreendê-la em profundidade.

Políticas públicas precisam de base concreta

Implementar o Dossiê Mulher não é apenas uma exigência legal — é uma ação urgente para garantir respostas estruturadas à violência de gênero. A cidade precisa mapear o que acontece nos bairros, nas comunidades, nos serviços públicos. Precisa reconhecer as especificidades de raça, classe, idade, orientação sexual e identidade de gênero.

Há boas iniciativas que podem servir de referência. O Observatório da Violência contra a Mulher de Santa Catarina, criado pelo Governo do Estado em parceria com a Bancada Feminina da Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina, demonstra como a articulação entre instituições pode produzir diagnósticos mais precisos e intervenções mais eficazes. É inconcebível que a capital catarinense siga estagnada enquanto outras esferas avançam.

A violência é real e urgente — ignorá-la é ser cúmplice

Nosso mandato permanece atento e vigilante diante da omissão prolongada da Prefeitura. Estamos acompanhando cada movimentação do Executivo e exigindo prazos, metas e transparência. Nosso objetivo é garantir a efetiva implementação da lei. Não aceitamos a criação de grupos de trabalho sem cronogramas, compromissos ou entregas.

Como vereadora, sigo firme na defesa de políticas públicas que enfrentem a violência com seriedade e responsabilidade. A aplicação do Dossiê Mulher Florianopolitana é um passo fundamental — e a cidade não pode mais esperar. A violência contra as mulheres é real, cotidiana e urgente. Ignorá-la ou tratá-la como invisível é se tornar cúmplice. Não se trata apenas de cumprir um rito institucional: trata-se de reconhecer uma realidade e agir de forma concreta para transformá-la.

Florianópolis precisa enfrentar esse desafio com seriedade, com orçamento, com prioridade política — e com dados. Sem diagnóstico, não há política pública. E sem política pública, não há justiça para as mulheres.

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