Ricardinho Medeiros resgata memória de personagens de Florianópolis: “Somos órfãos da escrita”

A Coluna Literária de Carlos Stegemann destaca o resgate que o jornalista Ricardinho Medeiros faz de personagens de Florianópolis – alguns mais conhecidos, outros quase anônimos – em seu novo livro, ‘Gente Nossa’. Além disso, entrevista Ana Paula Viana, da Livraria Divertida, pergunta o que Zé Dassilva anda lendo e encerra com duas preciosas dicas de leitura.


Ricardo Leandro Medeiros, o Ricardinho, como é conhecido pelos amigos, é um andarilho da literatura. Aos 62 anos, identifica seus personagens caminhando pela cidade, conversando sem barreiras ou formalidades com pessoas que costumam ser quase invisíveis aos olhos da maioria. Mas boa parte da suas essenciais contribuições à memória da cidade vem do amplo relacionamento acumulado – na música, nos movimentos sociais, na comunicação, em qualquer estrato social.

Ricardinho Medeiros e seu novo livro. Foto: Divulgação.

Em cada apuração, cativa as fontes, constrói novas amizades. Jornalista de formação (UFSC), escreve com a mesma elegância com que se traja. Natural de Joaçaba, onde viveu 12 anos, radicado em Floripa há 46, com uma vivência acadêmica de outros quatro anos em Le Mans, na França, Ricardinho é um legítimo cidadão universal.

​Prolífero e instigado, publicou 13 livros, com notáveis contribuições para a história da radiodifusão catarinense: ‘Dramas do Rádio’ (1998); ‘História do Rádio em Santa Catarina’ (1999, coautoria de Lucia Helena Vieira); ‘Zininho, uma canção para Florianópolis’ (2000, coautoria de Claudia Alvim Barbosa); ‘Caros Ouvintes, os 60 anos do Rádio em Florianópolis’ (2005, coautoria de Antunes Severo, in memoriam); ‘CBN Diário: uma luz no apagão’ (2007, coautoria de Carol Denardi); ‘No tempo da sessão das moças’ (2009) e ‘Reportagens Inesquecíveis’ (2014, coautoria de Marcelo Passamai), pela Insular Editora. Com o selo da Dois por Quatro publicou ‘Quatro Mulheres’ (2020); ‘Diário de Luise: relatos de uma mulher além de seu tempo’ (2022); ‘Uda Gonzaga, a primeira-dama do Morro da Caixa’ (2022); ‘Aldírio Simões – o manezinho maior’ (2023); e ‘Os filhos de Juventina’— um tributo à avó, benzedeira e curandeira (2024).

​Seu décimo-terceiro título, lançado recentemente, abre uma série – ‘Gente Nossa, Personagens de Floripa’ (Dois por Quatro), resgatando a trajetória de uma plêiade momesca que inclui Nega Tide, seis vezes campeã do carnaval de Floripa; Lidinho, o passista mais antigo da cidade; dona Geninha, primeira mulher a presidir uma escola de samba na capital; e Marinho, o policial que foi costureiro e presidente da escola de samba Protegidos da Princesa.

Além destes, figuras como a dona Lourdes, a mais elegante vendedora de loterias que já se conheceu (cruelmente assassinada), a ex-apresentadora de TV, jornalista e modelo Marisa Ramos; o lendário radialista Miguel Livramento; Dete Piazza, uma mulher que tem as marcas da vanguarda nos costumes morais da cidade; e JB Costa, o mais fiel intérprete dos versos de Cruz e Sousa, quase uma reencarnação do Cisne Negro

Ilustração inédita de Luciano Martins para Ricardinho Medeiros e sua obra.

​É Drica, contudo, que revela aos leitores a face de repórter do autor. Moradora de rua, dependente química, recorrente vítima de violências e que costumava renascer das cinzas, interagiu com Ricardinho por dois anos.

— Cheguei a abandonar esse material. Mas descobri que somos órfãos da escrita, da memória desses personagens. Reuni outros nomes, alguns mais conhecidos, outros quase anônimos e assim nasceu o ‘Gente Nossa’ — descreve o autor.

​Sua narrativa documental flerta com a prosa e por vezes até com a poesia. Apesar de feliz com o seu exercício de observar e registrar a memória da cidade, faz um desabafo.

— Falta muito incentivo, tanto da iniciativa privada quanto do setor público, para que as pessoas possam escrever sobre figuras de Florianópolis e do estado. Nunca pensei em ganhar dinheiro. O escritor ganha um troquinho, sobra quase nada…


O que estou lendo, com Zé Dassilva

Comenta-se muito sobre as obras célebres de George Orwell, como 1984 e Revolução dos Bichos. Mas esse livro aqui também tem o seu valor! Nele, vemos Orwell não falando sobre as sociedades, mas sobre si mesmo. Jovem e sem grana, tentando se manter pela Europa e passando por situações difíceis, dramáticas e divertidas. Quase como Hemingway faz em “Paris é uma festa”, mas numa dureza ainda maior. O olhar de Orwell sobre a manada da qual fazemos parte já está presente aqui, porém usando como ponto de vista a sua própria vida de faminto e desempregado que sonha um dia viver como escritor.

Zé Dassilva é chargista, escritor, roteirista e diretor de cinema.


Divertir e conectar com outras artes – a estratégia para formar leitores e vender livros​

A leitura precisa de pessoas como Ana Paula Viana, dedicada com fervor a fomentar a paixão pelos livros desde a infância. Essa simpática carioca faz jus ao nome de seu empreendimento — Livraria Divertida, instalada em um discreto endereço do bairro Córrego Grande, em Florianópolis. Ali, os livros ganham vida e, por isso, conquistam crianças e pais, se tornando um programa de família. “Se eu tivesse só aberto uma porta com prateleiras e estantes, eu não teria chegado a mais de três anos de funcionamento”, resume. 

Leia a entrevista:

Carlos Stegemann – Num cenário em que cada vez menos se lê e tantas livrarias encerram as atividades, qual a tua estratégia?

Ana Paula Viana — A proposta da livraria foi oferecer um espaço, como o próprio nome diz, de diversão, de lazer, de prazer, sem essa responsabilidade do pedagógico, dos livros ligados à aprendizagem. A ideia é transformar a leitura em uma brincadeira.

Qual a inspiração por essa escolha?

APV — Quem estuda desenvolvimento infantil sabe que as crianças aprendem brincando. E por que os livros precisam sempre ter um caráter um pouco mais formal, mais pedagógico, mais didático, mais chato? Por conta disso, as crianças preferem brincadeiras ao invés de ler.

E o que a Divertida oferece?

APV — A literatura infantil de hoje é muito diferente do que há 30 anos. Os livros criados são concebidos para estimular a imaginação, a criatividade, o faz-de-conta, a abstração. Na Livraria faço uma curadoria que prioriza os livros brincantes, divertidos, leves, aqueles que ajudam a criança a criar e a ter imaginação. 

A livraria tem um amplo espaço para eventos, interações — como isso é conectado com os livros?

APV — A estratégia é ampliar o guarda-chuva da literatura, conectá-la com a música, dança, artes plásticas, e atividades físicas. O espaço já foi pensado com essa finalidade. Selecionar um livro e promover uma contação de histórias com música, criar uma oficina de culinária, uma peça de teatro ou uma atividade de pintura com as crianças, nos muros ou nas paredes. Todos os finais de semana, ou no último domingo de cada mês, em vários dias ao longo da semana, oferecemos atividades às crianças e famílias, apresentando-as aos livros de outras formas, às histórias, aos personagens.

A Livraria Divertida fica na avenida Ângelo Crema, 428, no bairro Córrego Grande, em Florianópolis. Funciona de terça à sexta-feira, entre 11h e 19h, e aos sábados entre 10h e 18h. Acompanhe a programação no Instagram da Livraria Divertida.


Eu indico

Rulfo, o mestre de García Márquez e Vargas Llosa

“O realismo fantástico como hoje se conhece não teria existido sem esse livro. Dessa fonte beberam o colombiano Gabriel García Márquez e o peruano Mario Vargas Llosa” — avisa Eric Nepomuceno, logo no início de ‘Pedro Páramo’ (José Olympio), obra do mexicano Juan Rulfo (1917-1986), que ele traduziu e prefaciou.

Após a morte da mãe, Juan Preciado sai em busca de seu pai, o personagem que empresta o nome ao título do livro, um lendário assassino. A história não obedece a uma linha temporal exata, não tem um narrador fixo, tampouco distingue os mortos dos vivos, ambientada em um México contemporâneo à revolução de Emiliano Zapata.

Um indicador de seu sucesso de público é a tradução para 32 línguas. Vale investigar a conturbada e misteriosa vida do autor, que após essa obra-prima nunca mais publicou. “A leitura profunda da obra de Juan Rulfo me deu, enfim, o caminho que buscava para continuar meus livros”, admitiu García Márquez. Da lista dos imperdíveis.

Eva Schneider nos guia por Alfredo Wagner

Tarcísio Mattos pertence à casta dos melhores repórteres-fotográficos do jornalismo catarinense, mestre de uma geração. Editor e escritor inquieto, refugiou-se em Alfredo Wagner, onde ele e sua companheira Lu Eicke administram a Pousada Pedras Rollantes e cultivam clemenules orgânicas – uma bergamota metida a besta, quase sem sementes e sem cheiro, e, sobretudo, dulcíssimas. 

É claro que seria pouco para o experiente profissional, que não se desgarra da produção editorial e há pouco lançou “Alfredo Wagner nas trilhas de Eva Schneider”, apresentando a riqueza da história, da cultura e da diversidade ambiental do município serrano. A obra está baseada no personagem criado pela escritora alfredense Carol Pereira e tem o requinte das imagens e da edição do veterano jornalista. Publicada com recursos da Política Nacional Aldir Blanco de Fomento à Cultura, em parceria com a Associação de Turismo Viva Alfredo Wagner e prefeitura local.


Críticas e sugestões à coluna diretor@carboeditora.com.br

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