Rodrigo de Bona escreve artigo sobre a luta contra a corrupção e a implementação de medidas de integridade na Prefeitura de Florianópolis.
Há 524 anos, o Brasil sofre com graves problemas de clientelismo, patrimonialismo, nepotismo e tantos outros “ismos”, que corroem a justiça social e só fazem agravar a desigualdade. A primeira autoridade enviada pelo Rei de Portugal à sua nova colônia, em 1548, já era condenado por superfaturamento em obras de um aqueduto no Algarve!
Desde os anos 2000, o mundo passa por grandes transformações, com a intensificação da transparência pública na internet. O Brasil também avança, como signatário das três convenções internacionais anticorrupção (ONU, OEA e OCDE), e os avanços têm sido inquestionáveis: nunca se viu tantos políticos e empresários presos por fraude e desvio de recursos públicos, seja na esfera federal, nos estados ou municípios.
Com Florianópolis não seria diferente: gaúcho de sangue e manezinho de coração há 28 anos, sempre ouvi falar de construções irregulares em área de preservação, corrupção em alvarás de obras, funerárias, cemitérios, ambulantes de praia… Aqui cheguei e fui construindo uma carreira, num ramo novo que surgia aparentemente por acaso no país. Como auditor da CGU, fiz muitas auditorias em Floripa, no maciço do morro da cruz, na saúde, na educação, em obras. Mais tarde, ajudei a fundar Observatórios Sociais Municipais, implantar Portais de Transparência e criar mais de 400 Ouvidorias nas Prefeituras e Câmaras catarinenses.
Em 2022, fui convidado pelo atual prefeito, Topázio Neto, para estruturar uma Controladoria-Geral (CG) no município. Desafio imenso que colegas dos órgãos de controle (CGU, CGE, MP, TCE) acharam uma maluquice eu aceitar. Mas eu nunca havia visto um prefeito tão sinceramente preocupado em fazer as coisas certas na cidade, a curto e longo prazo.
Ademais, não poderia perder a oportunidade de implementar aquilo que vinha praticando e estudando toda a minha vida. A CG no Brasil é um case internacional, que permitiu estruturar um sistema interno de integridade no poder executivo federal, desde 2001, capaz de receber denúncias, investigar e punir, como nunca havia sido possível no país. A CGU (União), nos últimos 10 anos, tem conseguido economizar e recuperar recursos na ordem de 10x o seu custo anual, e tem expulsado quase 1000 servidores corruptos por ano. Na sequência, surgiram CGs em estados e capitais. Em apenas 5 anos, a CGE de SC já recupera 6x o seu custo anual.
Assim, em março de 2023 comecei uma saga incansável para implementar a CGM (Controladoria-Geral do Município) de Floripa, estruturando medidas de prevenção, detecção e combate a fraude e corrupção, e, muito mais do que isso, aumentando a transparência e implementando uma política de integridade e compliance, para mitigar os riscos que dão causa aos problemas históricos da cidade. Aceitei o desafio porque sabia o que podia ser feito, e recebi carta branca para investigar e punir.
A Prefeitura de Florianópolis já fazia, desde 2022, uma ofensiva contra irregularidades em contratos públicos. Em dezembro havia sido criado o Núcleo Anticorrupção, em conjunto com a Polícia Civil, para compartilhar informações e dar transparência às ações investigativas. Em 2023, com a criação da CGM em janeiro e minha chegada em março, iniciamos um mapeamento de riscos dos 20 maiores contratos do município e, a partir de maio, uma profunda auditoria nos projetos desportivos, por determinação do Prefeito. No segundo semestre, mapeamos a “máfia dos ambulantes” e desclassificamos centenas de candidatos dentre mais de 1000 laranjas detectados, numa investigação que corre na polícia.
Durante 2023, também regulamentamos o sistema municipal de ouvidoria e a sanção de empresas pela lei anticorrupção, firmamos parcerias com diversos órgãos de controle, implementamos medidas de proteção ao denunciante e softwares gratuitos para processos disciplinares, criamos a política municipal de integridade e compliance e instituímos técnicas de inteligência e ciência de dados que permitiram, por exemplo, cruzar mais de 13mil notas fiscais de projetos desportivos, comprovando desvios que antes eram só suspeitas de corredor.
A auditoria no esporte durou o ano todo, analisando contratos e prestações de contas atuais e de anos anteriores, desde 2017. Com três meses de trabalho, a CGM comprovou problemas nas prestações de contas e notificou os responsáveis pelos projetos para correção. Ainda em outubro, a Prefeitura suspendeu diversos projetos com irregularidades nas prestações de contas e emitiu notificações aos responsáveis para correção. Na sequência, instauramos 6 tomadas de contas especiais, procedimento apuratório praticamente inédito no município.
Sabemos que essas suspensões interromperam serviços importantes prestados à comunidade. Mas esse “freio de arrumação” foi necessário, também, para garantir o correto andamento dos projetos destinados às comunidades de Florianópolis, prestados por tantas organizações sociais que sempre trabalharam impecavelmente. Ainda no segundo semestre, o edital que seria lançado para 2024 foi totalmente revisado pela Secretaria de Licitações, Contratos e Parcerias, que passou a centralizar a contratação, e foram criadas diversas travas e controles preventivos, como a limitação dos valores de remuneração de professores e de contratação de assessorias.
No início de 2024, os dados e resultados parciais começaram a ser compartilhados com os Ministérios Públicos e a Polícia Civil, no âmbito do convênio mantido pela PMF com a PCSC. Em janeiro deste ano, na deflagração da primeira fase da Operação Presságio, os projetos lá citados já estavam suspensos. Mais do que isso, a auditoria tem auxiliado as investigações policiais e do MPSC, documentando o que agora já é de amplo conhecimento público.
Com a conclusão do relatório da auditoria em fevereiro, o Prefeito Topázio determinou a abertura de 4 auditorias de Tomadas de Contas Especiais para ressarcimento de valores, sobre mais de 1000 prestações de contas pendentes, bem como a suspensão dos repasses a cerca de 40 Organizações Sociais, das quais várias já foram encerradas e liberadas. O Prefeito também determinou a suspensão de todo o Edital dos projetos esportivos comunitários para 2024, para que a análise dos projetos das demais OSCs possa ser feita com mais profundidade.
Mas infelizmente, para quem vive em nossa amada Floripa, isso ainda está longe de acabar. Muitas irregularidades ainda virão à tona, porque não se resolve 250 anos de problemas em apenas 1 ou 2. É preciso paciência e muita perseverança, inclusive para aguentar firme diante de críticas inverídicas e mal-intencionadas. Para complicar, quanto mais se apura a corrupção, maior tende a ser a percepção da população de que existe corrupção. Por exemplo, desde o início da Operação Lava Jato, o Brasil caiu diversas posições no ranking de percepção da corrupção da Transparência Internacional. Isso significa que temos mais corrupção no país do que antes? Claro que não! Significa que tudo antes ocorria nas sombras, mas que agora temos as ferramentas tecnológicas e os recursos de controle necessários para detectar e punir.
Tudo isso só tem sido possível em Floripa, graças a uma gestão que permitiu que as auditorias, investigações internas e até a suspensão de repasses acontecessem. Essas atitudes causaram e ainda causarão mudanças permanentes na gestão municipal, que jamais contou com tantos servidores de carreira em cargos de primeiro escalão. E nomear chefias técnicas é só uma das mais de 200 medidas de integridade que ainda precisamos implementar, e que fará de Floripa uma cidade modelo de eficiência, ética e integridade no setor público, para todo o mundo.
Grande parte dessas ações não aparecem, ou levam algum tempo para surtirem efeito. Outras podem parecer apenas medidas de marketing. Por isso o aumento da transparência também é fundamental, inclusive por meio do TikTok, por exemplo, para que a imprensa e a sociedade acompanhem o que acontece. Mesmo assim, notícias falsas tentam descredibilizar a Controladoria e abalar a credibilidade do Controlador-Geral e do Prefeito Municipal, como a recente divulgação falsa sobre transparência. Desde o primeiro dia de 2024, a PMF possui um Portal de Dados Abertos, um catálogo de dados e diversas bases disponíveis, como receitas, despesas, licitações e contratos. Mesmo assim, uma avaliação da Open Knowledge Brasil feita em 2023 foi divulgada sem levar em conta esses avanços, e sem esclarecer que se tratava do índice de dados abertos, não da transparência como um todo, já que “dados abertos” é apenas uma das mais de 150 medidas de transparência que precisam ser avaliadas.
As mudanças continuam incluindo a criação de um novo Portal da Transparência, a aprovação pelo Prefeito do primeiro Plano Municipal de Integridade e Compliance, a criação da carreira de auditor interno para a Controladoria, a criação de um código de ética e o monitoramento patrimonial dos servidores públicos. Isso é o mínimo que Floripa merece, e que a população deve exigir de seus administradores e políticos.
Mas, finalmente, a cidade está no caminho certo!
Rodrigo De Bona é Phd, controlador-geral de Florianópolis e auditor federal da controladoria.