Direito de dizer o que não querem ouvir: Bolsonaro, entrevistas e democracia no banco dos réus. Por Eduardo Herculano

Artigo de Eduardo Herculano, advogado criminalista

O recente caso das medidas impostas ao ex-presidente Jair Bolsonaro reacende o debate sobre liberdade de expressão. Para Orwell, “se a liberdade significa alguma coisa, será sobretudo o direito de dizer às outras pessoas o que elas não querem ouvir”, onde o escritor traduz com precisão o cerne da controvérsia que envolve a recente vedação de conceder entrevistas, inclusive, sob pena de prisão.

O episódio lança luz sobre um debate essencial acerca dos limites da atuação estatal e da preservação da liberdade de expressão em um ambiente democrático. Isso porque a decisão restringe a comunicação do ex-presidente, especialmente as entrevistas, revelando um cenário preocupante no qual o diálogo plural e o contraditório são cerceados em nome de uma suposta proteção da ordem, o que põe em xeque a própria essência da democracia.

O Ministro Alexandre de Moraes estendeu as medidas para além das redes sociais, impactando diretamente a possibilidade de Bolsonaro se manifestar por meio da imprensa tradicional. A ameaça de prisão em caso de violação dessas determinações criou um clima de insegurança jurídica e autocensura tanto por parte do ex-presidente quanto dos veículos midiáticos, temerosos das consequências penais. Na prática, essa restrição cerceia não apenas um direito individual, mas suprime um espaço fundamental de diálogo com a sociedade.

Além disso, há um paralelo histórico relevante. Em 2019, quando preso, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva garantiu, após controvérsias iniciais, o direito de conceder entrevistas à imprensa. Nesse contexto, decisões judiciais do STF evitaram a censura e preservaram o direito do petista à comunicação, reconhecendo sua importância mesmo em condições excepcionais. Esse precedente demonstra uma aparente assimetria no tratamento dispensado a Bolsonaro, pois a pluralidade de vozes deveria ser amplamente promovida, mesmo em situações delicadas, para garantir o contraditório e o debate público.

Até mesmo entre os ministros as medidas não são unanimidade. O ministro Luiz Fux manifestou preocupação com o rigor das decisões, defendendo que as restrições devem ser proporcionais e fundamentadas em risco concreto, não em hipóteses especulativas ou motivações políticas. Fux ponderou que vedar de forma radical a liberdade de expressão e comunicação fere direitos constitucionais e pode comprometer a tradição democrática do país, especialmente quando tal vedação impede entrevistas ou declarações oficiais de figuras públicas implicadas em processos.

Aqui, é pertinente recordar o paradoxo da tolerância proposto por Karl Popper, segundo o qual uma sociedade aberta deve tolerar até mesmo discursos críticos ou incômodos, desde que não incitem a violência ou busquem a supressão do debate racional. A limitação preventiva das manifestações públicas de Bolsonaro representa um risco evidente dessa intolerância judicial à dissidência política, que pode comprometer a diversidade do debate democrático.

Não se deixa de reconhecer que a preservação do Estado de Direito e o combate ao abuso do poder são indispensáveis, mas não podem se sobrepor ao direito ao diálogo e à livre manifestação de ideias, inclusive àquelas que desagradam. O caso Bolsonaro deve ser interpretado não como um fato isolado, mas como um indicativo dos riscos do arbítrio judicial e da necessidade urgente de reafirmar as garantias constitucionais.

É nesses momentos de tensão que a frase de Orwell ganha toda a sua força: a verdadeira liberdade reside em permitir ouvir o que não desejamos, pois é no debate franco e aberto que a democracia se fortalece. Restrições desproporcionais e mal fundamentadas enfraquecem a confiança da sociedade tanto na Justiça quanto no pacto democrático que nos rege.

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