Depois de uma carreira bem-sucedida em festivais internacionais, Porto Príncipe inicia uma jornada nas salas comerciais brasileiras. O filme catarinense está atualmente em exibição em Florianópolis (Villa Romana Shopping), Aracaju, Rio de Janeiro e São Paulo. Na pré-estreia na capital catarinense, com a presença da diretora Maria Emília de Azevedo e parte da equipe no dia 13 de junho, o filme arrancou aplausos calorosos da plateia do Paradigma Cine Arte. Filmado em Antônio Carlos e em Florianópolis, “Porto Príncipe” é um drama comovente, que trata de amizade, etarismo, racismo, intolerância e xenofobia. Destaque para as atuações dos protagonistas Diderot Senat, um haitiano que nunca tinha feito cinema, e a veterana Selma Egrei. Nesta entrevista exclusiva, Maria Emília fala sobre o processo de produção, filmagem e construção do roteiro.
Qual foi o ponto de partida da sinopse de “Porto Príncipe” e como surgiram os protagonistas Bertha e Bastide?
Maria Emília de Azevedo – A narrativa de Porto Principe partiu de uma observação. Marcelo, o roteirista do filme e produtor da Dois Plátanos e eu encontrávamos cotidianamente um grupo de haitianos no terminal de ônibus da Lagoa da Conceição. O que nos chamou a atenção foi o fato de não encontrarmos o grupo em outros lugares do bairro. Isto nos instigou: por que aquelas pessoas não transitavam pelas ruas, comércio, como nós, moradores brancos e pequenos burgueses? Foi daí que surgiu a ideia de escrever algo sobre a chegada dos haitianos em Santa Catarina.
O que foi levado em conta para a escolha do elenco, especialmente de Selma Egrei e de Diderot Senat, haitiano que nunca tinha atuado no cinema e que já foi premiado pela atuação?
Maria Emília de Azevedo – O cinema tem esta especificidade da realidade também no elenco. As atrizes, atores devem “caber” no perfil físico do personagem. Assim aconteceu com Selma Egrei que, embora não seja de ascendência alemã, possui um biotipo que se assemelha fisicamente a esta etnia. É evidente que nem todos os alemãs tem cabelos claros e olhos azuis e que poderíamos ter escolhido uma atriz sem estas características físicas. Mas ai vem outra critério do cinema na escolha do elenco: a particularidade de imediatamente amalgamar a verossimilhança. Selma Egrei tem as características físicas necessárias para de imediato o público “ler” uma descendente alemã. Por outro lado, uma vez que estávamos falando sobre a migração haitiana, nada mais sensato que ter um ator e, neste caso, um não ator que estivesse vivenciando a condição de migrante. Foram realizados testes com diversas pessoas e Diderot Senat acabou ganhando o papel também por seu olhar grave e meigo simultaneamente. Era exatamente assim que imaginávamos o Bastide: um homem que se posiciona, sabe o que quer, busca uma condição melhor para sua vida mas tem uma delicadeza e gentileza imensas. Diderot, apesar de não ter feito outro filme (até então), cabia nesta tipificação. Mas vai além. Diderot é um talento artístico e vivenciou exatamente o que o personagem Bastide percorre na narrativa.
O filme tem uma trajetória de sucesso em festivais. Qual a expectativa sobre a carreira nas salas comerciais?
Maria Emília de Azevedo – É interessante observar que “Porto Príncipe” foi mais aceito nos festivais internacionais que nos nacionais. Não sei por qual motivo. Ainda não fiz uma análise para entender a respeito. O filme participou de festivais nos Estados Unidos, Caribe, América Latina, Europa e África. Estamos neste momento virando a segunda semana de exibição na Sala do Cinemasystem, do Shopping Villa Romana, em Florianópolis, e estreia em SP, RJ e Aracaju. A sessão de estreia no Paradigma, podemos considerar bem sucedida com sala cheia e plateia motivada para o debate após a exibição. “Porto Principe” tem como Distribuidora a O2 Play que, além de ser uma referência na área, está fazendo um trabalho brilhante para lançar e posicionar Porto Príncipe nas salas comerciais. Então vamos aguardar com o coração batendo forte para que o filme tenha carreira longa e seja visto por um número significativo de brasileiros!
“Porto Príncipe” tem como fio condutor uma amizade improvável e trata de temas complexos, como xenofobia, racismo e intolerância. Na sua opinião, quais as principais reflexões que o filme provoca nas plateias?
Maria Emília de Azevedo – Na verdade não temos ainda retorno das reflexões pontuais que o filme tem instigado às pessoas. Mas sim, já temos a devolução que algumas pessoas gostam e outras não são aderentes à complexidade reflexiva que a narrativa provoca. Ou não concordam com a forma da colocação dos temas. Nós queremos contar “apenas” uma história onde os personagens, em uma condição inusitada, se encontram e desenvolvem uma amizade construída com dificuldade, vencendo os aspectos culturais, etários, de gêneros, etc. Mas a abertura para vivenciar o universo diverso do outro, por si só, nos faz pensar e refletir. Bertha e Bastide tem esta disponibilidade levados pela necessidade. O que a principio é árduo vai se tornando prazeroso e afetuoso. E a diferença passa a ser a bela engrenagem que movimenta a amizade dos dois. Motivados pela palavra “professor” – Bastide declara ter sido professor no Haiti, Bertha diz que o marido dela também dava aula -, os personagens se abrem um ao outro e a troca de conhecimento e experiências se configuram.
Fale um pouco sobre a contribuição dos haitianos na concepção e realização do filme
Maria Emília de Azevedo – A contribuição dos haitianos para o filme é essencial e existencial. A narrativa é criada a partir da situação real deles: o deslocamento de um país a outro país, denominado de migração. De um país arrasado por um terremoto, em crise política sistemática induzida historicamente por países imperialistas a um país que imaginavam ser acolhedor. É no Brasil que os haitianos descobrem e vivenciam o racismo. A trilha musical, coordenada por Antonio Villeroy, teve músicos, cantores e compositores haitianos imigrantes. O still e making of foi feito por um estudante haitiano do curso de cinema da UFSC. A figuração emprestou o seu talento e expressão em criole emoldurando o protagonista Bastide. A música de abertura do filme tem a seguinte letra:
An Haiti lamizè a tranble = no Haiti a miséria é tremenda
Haiti oh oh oh = oh Haiti
Mezanmi kisa m’pral di = gente o que eu vou dizer?
Menm malet mwen pèdi = perdi até a minha mala
Mdi malere kap sopòte = os pobres que estão tentando aguentar
Anmwey, anmwey, anmwey = socorro, socorro, socorro
Wale, wale, wale = você se foi, você se foi, você se foi.
Na pré-estreia, no Paradigma, você falou que teve espaço para construção coletiva e improviso. Como isso ocorre no teu processo de fazer cinema?
Maria Emília de Azevedo – Acho importante e necessário artisticamente falando receber as contribuições estéticas e técnicas da equipe e do elenco. É uma forma de compreender mais sobre o universo da narrativa. O diretor sabe desde sempre o que pretende fazer e que filme gostaria de ver na tela, porém, abrir para considerações e extremamente salutar. Em “Porto Principe”, também a equipe se posicionou nos temas e questionava, discordava e interagia a respeito durante a pré-produção e seguiu durante a produção. Isto resultou até mesmo na reescritura de algumas cenas. Não foi exatamente uma construção coletiva, mas sim uma construção colaborativa informal. Aprendemos muito com a equipe e elenco. Em relação a atuação do elenco, optamos em tornar mais orgânico a forma do elenco se relacionar com o texto do roteiro: rubricas e diálogos. Ao elenco era contextualizada sobre cada uma das cenas e, a partir da compreensão do sentido das falas, os atores poderiam adaptar e alterar frases e palavras. Isto partiu porque tinhamos no elenco um ator estreante mas sobretudo um ator que estava vivenciando no papel o que já havia passado na vida real. Selma Egrei e Leo Franco compreenderam este jogo de representação e participaram ativamente e com imensa generosidade com Diderot. Também na planificação (descrição das cenas por intemédio dos planos) aconteceram alterações a medida que entendíamos o valor emocional que o elenco estava disponibilizando à cena. Cenas que a principio tinha mais de cinco planos, por exemplo, passaram a ter apenas um (plano sequência).
Com o seu primeiro longa-metragem nas telonas, qual é teu próximo projeto para o cinema?
Maria Emília de Azevedo – Estou me preparando para rodar “Um Lugar para Viver”, um longa metragem que tem as filmagens marcadas para agosto/setembro deste ano de 2024. Roteiro de Marcelo Esteves e produção da Contraponto. Em preparação o “Estamos Bem”, longa metragem com roteiro também de Marcelo Esteves com produção da 2 Plátanos e coprodução da Cafeína e Muringa.