Entre o “querer” e o “dever”: uma análise sobre os limites das decisões políticas. Por Diana Côrrea

Artigo de Diana Côrrea, sócia do Núcleo de Contratação Pública, Ambiental e Urbanístico da Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados

No exercício da função administrativa, especialmente pelo Poder Executivo, decisões políticas fazem parte do jogo. É natural que os atos administrativos tenham um componente político. Governar é fazer escolhas, definir prioridades e alocar recursos conforme um projeto de governo.

Essas decisões são a expressão da democracia representativa, pois traduzem a vontade do eleito, referendada pelos eleitores nas urnas. São, portanto, em sua essência, legítimas.

No entanto, existe uma fronteira que não pode ser ultrapassada. A discricionariedade não deve ser uma carta em branco para que o agente público aja unicamente conforme sua vontade pessoal ou interesses que não encontram amparo no ordenamento. Existem, portanto, limites a serem seguidos, sob pena de invalidade do ato praticado.

A doutrina majoritária defende que, em regra, as decisões administrativas precisam ser motivadas e, uma vez motivadas, devem seguir no sentido dos motivos que determinaram a tomada de decisão.

A teoria dos motivos determinantes estabelece que a administração se vincula à motivação que tenha fundamentado o ato administrativo. Sobre o assunto, destaca-se a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello:

De acordo com essa teoria, os motivos que determinaram a vontade do agente, isto é, os fatos que serviram de suporte à sua decisão, integram a validade do ato. Sendo assim, a invocação de “motivos de fato” falsos, inexistentes ou incorretamente qualificados vicia o ato mesmo quando, conforme já se disse, a lei não haja estabelecido, antecipadamente, os motivos que ensejariam a prática do ato. Uma vez enunciados pelo agente os motivos em que se calçou, ainda quando a lei não haja expressamente imposto a obrigação de enunciá-los, o ato só será válidos se estes realmente ocorreram e o justificavam.[1]

Os tribunais brasileiros são uníssonos quanto ao assunto. O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, é firme ao estabelecer que:

1. Os atos discricionários da Administração Pública estão sujeitos ao controle pelo Judiciário quanto à legalidade formal e substancial, cabendo observar que os motivos embasadores dos atos administrativos vinculam a Administração, conferindo-lhes legitimidade e validade. 2. “Consoante a teoria dos motivos determinantes, o administrador vincula-se aos motivos elencados para a prática do ato administrativo. Nesse contexto, há vício de legalidade não apenas quando inexistentes ou inverídicos os motivos suscitados pela administração, mas também quando verificada a falta de congruência entre as razões explicitadas no ato e o resultado nele contido” (MS 15.290/DF, Rel. Min. Castro Meira, Primeira Seção, julgado em 26.10.2011, DJe 14.11.2011).[2]

Essa exigência, expressa na legislação infraconstitucional, encontra seus fundamentos em princípios constitucionais como a publicidade, a legalidade, a moralidade e a inafastabilidade da jurisdição. Representa um pilar da própria democracia e uma ferramenta indispensável de controle da Administração Pública.

A discricionariedade, portanto, não é a licença para o arbítrio. É, antes, a responsabilidade de escolher dentre as opções juridicamente aceitáveis, justificáveis e que atendam ao interesse público finalístico[3].

Ainda assim, não são poucos os casos em que a vontade se sobrepõe à motivação e à legalidade. Também não é incomum ver decisões taxadas de “estratégicas” que, na prática, atendem interesses específicos e momentâneos.

É nesse ponto que os mecanismos de controle – seja o controle social exercido pelo cidadão, seja o controle técnico dos Tribunais de Contas ou o controle de legalidade do Poder Judiciário — devem entrar em cena.

O controle do mérito dos atos é um tema que ainda gera debates e certa resistência no Judiciário. No entanto, em casos de manifesta violação aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, ele não apenas é possível como se torna imperativo para que o exercício legítimo do poder não se converta em abuso ou arbitrariedade.

A democracia não é só a escolha dos governantes. É também a forma pela qual eles exercem o poder. O “querer” do governante não deve se sobressair ao “dever” do administrador público.

Esse é o ponto de equilíbrio que sustenta um Estado verdadeiramente republicano.


[1] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. 30ª edição – São Paulo: Malheiros, 2012. p. 408.

[2] STJ, AgRg no REsp n. 1.280.729/RJ, relator Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 10/4/2012, DJe de 19/4/2012.

[3] Sobre o assunto, destaca-se: “os atos administrativos discricionário estão cada vez mais vinculados, diante da juridicidade, ou seja, pela regulação de regras ou princípios, diante do controle finalístico do ato administrativo.” BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014. p. 241 e ss.

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