Fecham-se as cortinas do “Teatro do Absurdo Constitucional”? Por Thiago de Miranda Coutinho

Artigo de Thiago de Miranda Coutinho, graduado em Jornalismo e Direito, com pós-graduação em Inteligência Criminal e membro efetivo do Instituto dos Advogados de Santa Catarina (IASC).

Desde tempos imemoriais, a arte se presta ao nobre papel de espelhar a realidade por meio da linguagem simbólica. Em determinados contextos históricos, contudo, essa expressão deixa de ser metáfora e se confunde com o próprio enredo da vida: o que era crítica passa a ser crônica e o que era palco passa a ser plenário!

Todavia, são necessárias boas doses de sensibilidade jurídica e altruísmo democrático para embriagar-se com essas reflexões.  

Assim, ante os impensados, incontáveis e inacreditáveis desdobramentos daquilo que vem ultrajando a Constituição Federal brasileira nos últimos anos, é impossível não revisitar – com certa freqüência, inclusive –, o artigo “O ‘Teatro do Absurdo’ Constitucional”, escrito por este autor e, publicado pela primeira vez, em 2021.

Naquele 07 de setembro de 2021, data em que iniciavam as celebrações do Bicentenário da Independência do Brasil, uma fotografia nos convidava à reflexão: a jornalista Sarah Teófilo, repórter da Record TV, eternizou um “quadro” simbólico carregado de sentidos.

Era pandemia e um homem em situação de rua, numa nítida condição de vulnerabilidade social, dormia desfalecido no chão; no acostamento de uma via pública. Ao seu lado, passava um casal trajado de verde e amarelo, “protegidos” com máscaras nos rostos e envoltos pela bandeira do Brasil; nas mãos, um cartaz com a foto do então presidente da república.

Eis que tamanha simbologia fotográfica “gritava” ecoando o gênero artístico mundialmente conhecido, o “Teatro do Absurdo”; assim descrito por este autor no texto de 2021:

Criada no final da década de 1950 pelo jornalista de origem húngara, mas radicado na Inglaterra, Martin Esslin, a expressão “Teatro do Absurdo” buscou condensar obras cuja dramaturgia divergisse daquelas tidas como tradicionais à época.

Neste sentido, como ponto central, tais peças reuniam uma abordagem excêntrica a temáticas existencialistas e, assim, buscavam expressar aquilo que acontece quando a própria existência humana é considerada sem propósito: a ruptura do diálogo!

Não obstante, contextualizado em tempos de pós-segunda guerra mundial, o “Teatro do Absurdo” permeava um ambiente onde, através da Arte tragicômica, buscava-se retratar as agruras de uma sociedade moderna em crise, mormente à fragilidade de valores éticos e morais (postos e impostos) durante a segunda metade do século XX, que a história humana contou.

Salienta-se, também, que suas personagens detêm posturas discrepantes à normalidade por meio dos seus comportamentos desarrazoados que, ao cabo, revelavam ações inesperadas e – na contramão e contradição da obviedade –, nada convencionais. Eis, decerto, motivo que o tornou tão aclamado.

E justamente em oposição aos enredos comumente conhecidos – onde se tem delimitados o início, meio e fim de uma obra –, o “Teatro do Absurdo” ostenta peças imprevisíveis e desenhadas entre as colunas de um amontoado de acontecimentos inabituais, cuja existência de elementos fantasiosos e devaneadores são pilares do contexto poético proposto; dificultando, inclusive, a compreensão da narrativa (como na vida, no texto e na atualidade dos acontecimentos). (COUTINHO, Thiago de Miranda. O “Teatro do Absurdo” Constitucional. Revista PGE, 2021.)

“Neste enredo de uma realidade brasileira, como na magia de um carrossel, a história se repete” e, no alto do agora, olhando para o passado, nota-se que o Brasil não apenas encenou aquela dramaturgia alegórica; ele a abraçou e deu continuidade a um espetáculo que teima em não sair de cartaz; talvez por ainda ter público.

Afinal, se naquele primeiro texto se desenhava a perplexidade diante de um Estado Democrático de Direito em crise – marcado por afrontas institucionais, retóricas incendiárias e rompantes populistas travestidos de patriotismo –, hoje o cenário é ainda mais desafiador: o que antes parecia ato isolado, agora revela traços de uma encenação institucional contínua, repleta de improvisações, inversões de papéis e roteiros reescritos e adaptados ao sabor (amargo) do momento de instabilidade constitucional do texto de ontem que continua no recorte de agora.

Inegavelmente, o ocorrido em 8 de janeiro não foi apenas uma página infeliz da história republicana. Aquilo foi a síntese de um projeto antidemocrático que encontrava respaldo em setores radicalizados da sociedade e que, de maneira perturbadora, se articulava com a banalização da linguagem jurídica.

O apelo ao “cumprimento da Constituição” tornou-se, paradoxalmente, argumento para descumpri-la. A liberdade de expressão foi instrumentalizada para justificar discursos de ódio, a separação dos poderes confundida com submissão entre eles e o Estado de Direito ameaçado por quem o invocava em praça pública com fervor quase (quase?) religioso. O resultado foi (é) uma distorção caricatural da norma jurídica.

Assim como um rio que desagua no mar, o que se percebe no Brasil (em se tratando de aclamação popular), é o nascimento de um estereótipo caricato tido, por muitos, como “salvador da pátria”; ou, simplesmente, alguém cujas propostas estariam (na visão destes muitos) “acima de tudo” ou de qualquer suspeita ou contestação.

E quanto aos que “ousam” discordar desse viés, ou que apenas o questionam, como rege a democracia, recebem uma rotulação hostil e impublicável.

[…] Afinal, como pode tamanha voracidade em dar sentido às próprias interpretações do texto legal no afã de provar justamente o contrário do que se fala? Descumprir a Constituição alegando estar defendendo-a é, no mínimo, inquietante! […]

[…] Instituiu-se quase que a força, uma falaciosa e constrangedora vinculação da bandeira nacional a um determinado “lado”; a uma determinada figura pública tida como opção do “bem contra o mal”. Ao modo que orgulhar-se do símbolo maior da nação brasileira fosse atestar aos desavisados, uma espécie de “posicionamento político ideológico culposo”. […]

(COUTINHO, Thiago de Miranda. O “Teatro do Absurdo” Constitucional. Revista PGE, 2021.)

Notadamente, ao avançar do tempo, o contexto atual (setembro de 2025), expõe uma perigosa tendência já alertada: da outrora tensão natural entre os Poderes, à desarmonia como regra e não exceção; da linguagem jurídica manipulada e usada como instrumento de espetacularização processual penal, ao oportunismo legislativo que busca anistiar-se de qualquer responsabilidade.

E mais! Conceitos como democracia, liberdade e legalidade moldados ao gosto do intérprete da vez. Momentos em que o “Teatro do absurdo” deixa de ser alegoria para continuar sendo realidade processual, legislativa e, o mais grave, social (desde quando alertávamos em 2021).

Já a plateia, composta por um povo muitas vezes (des)informado e (des)crente, assiste ao espetáculo com olhos embotados. Não há mais clareza sobre quem são os protagonistas e quem são os antagonistas. O herói de hoje torna-se o vilão de amanhã; o guardião da Constituição num dia é acusado de afrontá-la no outro.

O ciclo se repete, como nas peças de Eugène Ionesco ou Samuel Beckett, frequentemente associadas ao gênero artístico do “Teatro do Absurdo”, em que os personagens caminham em círculos, repetem falas desconexas e sem sentido, perdem-se em diálogos ilógicos e cenários incongruentes.

No ponto, o Professor Doutor, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, já advertia com lucidez, no ano de 2014, sobre os riscos desse, digamos, moralismo seletivo.

Diante de uma situação de tal monta, de todo caótica, qual o caminho a se adotar? Desistir ou lutar? 

A resposta parece evidente, mas não tem sido assim. Embaralhadas as coisas pela complexidade e fustigados pela pressa de se ver tudo resolvido “para ontem” (isso seria um sintoma dos tempos em que se vive?), muitos têm procurado soluções alternativas, algumas com real brilho, sem embargo de que tudo se possa estar fazendo em detrimento dos fundamentos e, pior – porque mais difícil de perceber – dos fundamentos dos fundamentos.

Por isso, atenção, muita atenção. É preciso ter paciência; que se não concilia com resignação. Afinal, esperança é de democracia; e ela, seja lá em que face se apresente, não é nunca o que se quer e sim sempre o que se conquista. Por isso é preciso muita paciência, tanto quanto resistência para não se desistir nas primeiras ou mesmo nas mais duras dificuldades; e luta porque, no jogo pela democracia, muitos não querem saber de fair play, começando por aqueles que, como diziam os romanos, pensam-se em um lugar de legibussolutio. Trata-se, portanto, de uma receita amarga, de luta dura; mas é a que se pode ter se não se quiser fazer a racionalidade ou manter tudo como está ou – pior – fazer um novo sistema que seja igual ao que se quer superar.

 “E da forma como os indícios e resquícios do ‘Teatro do Absurdo’ ecoam, eis que em outra oportunidade, desta vez em 2016, novamente nos alertou o Professor Doutor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho”: (COUTINHO, Thiago de Miranda. O “Teatro do Absurdo” Constitucional. Revista PGE, 2021.)

O problema da Moral, assim, não é ela em si e sim a individualização com a qual se apresenta, de todo fluida e de pouco controle.

Pior mesmo, é o que se passa com aqueles que, a partir desse lugar solitário, querem ser os moralizadores e usando suas posições imaginam consertar o mundo, não raro impondo aos outros aquilo que têm como padrão.

Ao afirmar que são figuras diferentes (ou mesmo opostas), distinguiu-os dizendo que o “homem moral se impõe padrões de conduta e tenta respeitá-los, ao passo que o moralizador quer impor ferozmente aos outros os padrões que ele não consegue respeitar.

O escopo é a vitória a qualquer custo. Sintomático, portanto, que se pretenda relativizar todas as regras e princípios, de modo que possam servir ao intérprete da forma mais adequada às suas necessidades; e mesmo que se tenha que avançar contra textos com alta substancialidade como os da Constituição Federal.

Infelizmente, o Brasil constitucional parece oscilar. Logo, o desafio, portanto, não é apenas institucional, mas hermenêutico. Exige-se, mais do que nunca, um compromisso com o texto constitucional para além da conveniência política. É necessário retomar a centralidade dos princípios estruturantes: separação dos poderes, devido processo legal, presunção de inocência e liberdade de expressão; sem relativizações ou exceções ideológicas.

E nesse ponto, cabe indagar: estaríamos, enfim, presenciando o encerramento desse espetáculo mambembe? Tragicômico! Ou, como nos “bons” textos teatrais, estaríamos assistindo à troca de cenário e de elenco; num claro indicativo de novo ato? Será que as cortinas estão descendo momentaneamente, apenas para dar lugar à reconstrução do palco? Haverá continuação dessa “dramaturgia”?

Perguntas que exigem vigilância constante! Sem normalizar o absurdo! Fechar as cortinas, portanto, é mais do que encerrar um ciclo. É reconhecer que o espetáculo já passou do limite entre a crítica e o colapso democrático; entre a alegoria e a anomia.

É preciso abrir espaço para um novo teatro, mais leve e promissor. Daqueles cuja trama carrega responsabilidade social, sobriedade institucional, compromisso coletivo com a Constituição, respeito às divergências opinativas, lealdade ao debate, à intelectualidade, à fundamentação argumentativa e, sobretudo, amor à mesma bandeira; da cor do Brasil!

Enquanto isso, seguimos todos – plateia e personagens – no limiar entre a tragédia e a comédia; entre o Direito e a dramaturgia. Esperando, quem sabe, que a vida volte a imitar a arte. Mas desta vez, com um roteiro mais digno, lúcido e constitucional; justo e perfeito com os olhos no futuro.

Referências:

BRASIL. Em 2021, celebramos o início do ano do bicentenário da Independência. Secretaria Nacional de Assistência Social, Brasília, 7 set. 2021. Disponível em: <https://www.gov.br/pt-br/noticias/assistencia-social/2021/09/em-2021-celebramos-o-inicio-do-ano-do-bicentenario-da-independencia>. Acesso em: 04 set 2025.

BECKETT, Samuel. Esperando Godot. 1.ª ed. (Coleção Especial capa dura). São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Capa dura, 192 p.

COUTINHO, Thiago de Miranda. O “TEATRO DO ABSURDO” CONSTITUCIONAL. Revista PGE, ed. especial, p. 361, Revista PGE, 2021. Disponível em: <https://www.pge.sc.gov.br/wp-content/uploads/2021/12/Revista-PGE-2021.pdf>. Acesso em: 05 set. 2025.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Direito e Psicanálise: interlocuções a partir da literatura. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.

IONESCO, Eugène. O rinoceronte (Coleção 50 anos). 1. ed. São Paulo: Nova Fronteira, 19 out. 2015. 128 p.

Martin Julius Esslin foi um produtor, jornalista, crítico e professor de arte dramática. Criador do gênero “Teatro do Absurdo” (1918 – 2002). ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL. Teatro do Absurdo. São Paulo: Itaú Cultural, 2021. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo13538/teatro-do-absurdo. Acesso em: 04 set. 2021.

TEÓFILO, Sarah. Brasília, 7 de setembro de 2021. Brasília, 07 set. 2021. Instagram: @sarah.teofilo. Disponível em: https://www.instagram.com/sarah.teofilo/. Acesso em: 13 set. 2021.

Texto parcialmente apresentado em palestra proferida no Seminário de Direito Penal, Criminologia e Processo Penal em homenagem a Winfried Hassemer, na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), em 21/03/2014. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Por que sustentar a democracia do sistema processual penal brasileiro? 2015. Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/por-que-sustentar-a-democracia-do-sistema-processual-penal-brasileiro>. Acesso em: 13 set. 2021.

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