Fim dos hospitais de custódia: “Eu ando na rua com medo que algum deles venha atrás de mim”, diz enfermeira

Hospitais de Custódia preocupam a população

Fernanda*, uma enfermeira que atua no Hospital de Custódia de Florianópolis, confessa sentir medo ao andar nas ruas. Seu temor é justificado: ela teme que algum dos pacientes, considerados inimputáveis por problemas mentais, possa atacá-la após ser liberado.

Eu tenho medo quando saio na rua. Tenho medo de que algum deles tenha saído e vá atrás de mim – conta a profissional de saúde que trabalha no Hospital de Custódia de Florianópolis.

O Hospital de Custódia, que poderia fechar as portas em maio, conforme a Resolução 487/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), teve seu prazo de funcionamento prorrogado por mais três meses em Santa Catarina. A medida afeta quase 5 mil pacientes em todo o país, que serão encaminhados para tratamento em casa, em hospitais ou em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Só na unidade de Florianópolis são 58 pacientes de todo o Estado.

Fernanda, que trabalha no local há dois anos, descreve o clima de tensão que permeia o ambiente. Apesar da presença policial 24 horas, os profissionais de saúde, como enfermeiros, médicos, assistentes sociais e psicólogos, enfrentam diariamente situações de risco. Um dos pacientes internados no local é Irineu Carlos Nórdio, o “Esquartejador de Videira“, apresentado em reportagem do upiara.net sobre o tema.

Temos pacientes que mataram e acreditam que não fizeram nada. Recebemos ameaças e até tentativas de agressão”, relata Fernanda. Ela questiona como será possível supervisionar esses pacientes sem a presença constante de policiais e como as famílias poderão lidar com a volta desses indivíduos para casa – diz.

Como a família vai receber alguém assim?

É com essa pergunta que Fernanda fala sobre o trabalho de sua colega assistente social. Segundo ela, algumas famílias dizem que não têm estrutura para receber os pacientes de volta, mesmo quando os mesmos já receberam alta hospitalar.

A profissional lembra de uma semana particularmente assustadora, quando uma psicóloga e uma assistente social receberam uma carta com ameaças de morte de um paciente. Na mesma semana, uma enfermeira foi vítima de um ataque, tendo seu jaleco cortado por um paciente internado por múltiplos estupros.

Foto: Frente do hospital de custódia de Florianópolis
Crédito: SAP/SC

Não vejo como essas famílias poderão receber de volta alguém que cometeu atos tão graves. E como profissionais, não sabemos para onde enviar esses pacientes – questiona Fernanda, cuja voz embarga ao recordar o cotidiano no hospital.

O Brasil conta atualmente com 32 manicômios judiciários, que estão gradativamente encerrando suas atividades. Ainda não há decisões concretas sobre o destino desses pacientes, deixando profissionais como Fernanda em uma situação de incerteza e medo pelo futuro.

A equipe do hospital questiona: para onde irão esses pacientes? E como garantir a segurança de todos envolvidos? Enquanto isso, a busca por políticas públicas eficazes e alternativas de tratamento segue em meio a um cenário de dúvidas e preocupações.

Vozes a favor do fechamento

O debate sobre o fechamento dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico no Brasil ganha força, com defensores da medida alegando que isso trará melhorias significativas no atendimento aos pacientes e no respeito aos direitos humanos.

Os principais argumentos a favor do fechamento, que envolve profissionais de saúde e pacientes psiquiátricos, e/ou familiares, são baseados na necessidade de humanizar o tratamento psiquiátrico e em linha com as diretrizes internacionais de saúde mental. Os defensores apontam que os hospitais de custódia, muitas vezes, perpetuam a estigmatização e a segregação dos pacientes, em vez de promover sua reinserção social.

No Seminário Internacional de Saúde Mental do poder judiciário feito em 2023 com participação de pesquisadores e do próprio Conselho Nacional de Justiça, autor da medida para o fechamento dos hospitais de custódia, o pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Ernesto Venturini, defendeu a medida.

Ao destacar a atuação brasileira no tema, ela afirmou se alegrar com a resolução do CNJ

[…] porque efetivamente o que está acontecendo hoje é um comprometimento de todos da Justiça, da saúde e da sociedade para conseguir um resultado . É afirmar uma vontade, com determinação, para conseguir esse resultado. É algo que vale a pena e que é possível – pontuou Venturini.

Foto: Imagem mostra cena de um manicômio brasileiro
Crédito: reprodução do documentário MATERIAL BRUTO, de Ricardo Alves Jr.

Na data, um documento assinado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR), aponta que é importante todos saibam que o Seminário foi um marco para a discussão por representar a composição de mais uma iniciativa destinada ao “enfrentamento do estado de coisas inconstitucional que descredencia o funcionamento do sistema prisional brasileiro”.

No documento, feito ao final do evento, ambos os órgãos afirmam que a data trouxe “olhares da ciência, mas para a visibilização dos esquecidos e abandonados, dos desassistidos da humanidade, daqueles que nem mesmo por conta própria podem ou conseguem reivindicar os interesses mais elementares que lhes pertencem: estou a falar das pessoas com transtorno mental em conflito com a lei”.

Outro argumento é a questão dos direitos humanos. Para o CNJ, muitos pacientes nesses hospitais são considerados inimputáveis e permanecem internados por longos períodos, sem perspectivas de reabilitação ou liberação. Os defensores do fechamento argumentam que esses indivíduos têm o direito a um tratamento digno e à possibilidade de reintegrar-se à sociedade.

Além disso, há quem argumente que o fechamento dos hospitais de custódia permitirá um melhor uso dos recursos públicos, investindo em serviços de saúde mental mais eficazes e menos custosos. A ideia é criar uma rede de atendimento comunitário que ofereça suporte e tratamento adequado, próximo das residências dos pacientes.

O debate continua acalorado, com ambos os lados apresentando argumentos robustos. Enquanto isso, o governo e as instituições de saúde buscam encontrar um equilíbrio entre a necessidade de proteger a sociedade e a de garantir o bem-estar e os direitos dos pacientes com transtornos mentais.


*Fernanda é um nome fictício dado pela reportagem para não expor uma profissional que deu seu depoimento em anonimato.

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