Fim dos hospitais de custódia: o Esquartejador de Videira pode ficar em liberdade?

Hospitais de Custódia causam preocupação em Santa Catarina

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decretou o fim dos manicômios judiciários no Brasil com a Resolução 487/2023, que manda fechar as portas desses estabelecimentos até maio. A medida põe na rua quase 5 mil pacientes, considerados inimputáveis por problemas mentais, e os encaminha para tratamento em casa, em hospitais ou em CAPS.

Em Santa Catarina, que pediu para adiar a medida por mais três meses após o prazo final para extinção dos hospitais, há 50 pacientes internados com essas características que vão precisar de novo local para receber tratamento. Um deles ficou conhecido como o Esquartejador de Videira pelos crimes que vieram a público em 2002.

Irineu Carlos Nórdio, na época com 27 anos, admitiu ser responsável pelo assassinato de duas mulheres, cujos corpos foram desmembrados com um serrote e partes lançadas no Rio Veloso, localizado em Videira.

Em agosto de 2002, Irineu foi condenado a 10 anos e 10 meses de prisão pelo assassinato de Juvenira Moraes de Oliveira, de 36 anos, que trabalhava como cozinheira na boate Talismã. O homem foi considerado pela Justiça, e por médicos, como um paciente psiquiátrico e desde então está privado de liberdade no Hospital de Custódia de Florianópolis.

Depois de condenado, Irineu foi sentenciado mais uma vez por mais dois assassinatos, de Ecir e Valderes. O esquartejador admitiu ainda que matou seu colega de cela, Nelson Ferreira de Araújo, em 11 de agosto de 2002.

O crime foi tão brutal que a vítima recebeu múltiplas perfurações. No dia seguinte, o esquartejador cortou a língua do cadáver e a descartou no vaso sanitário. Por este crime, em 2004 Irineu foi condenado a mais 13 anos e 4 meses de reclusão e 2 anos de detenção. Até hoje ele cumpre pena no Hospital de Custódia da Capital.

No entanto, ele não é o único que cometeu crimes hediondos e está no Hospital de Custódia de Florianópolis. A Secretaria da Administração Prisional e Socioeducativa de Santa Catarina (SAP-SC), em nota, explicou que os crimes mais cometidos por pacientes em tratamento no local são estupros. Seguido de assassinatos. Ou ambos em conjunto.

Afinal, o esquartejador voltará para a sociedade?

Na verdade, a resposta não é simples, mas o upiara.net foi atrás de respostas. Em uma entrevista concedida pelo Juiz de Direito Rafael de Araújo Rios Schmitt, as informações começam a ficar mais claras.

Schmitt começa sua fala explicando que os hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico são atualmente geridos pelo sistema de administração prisional e socioeducativo do Estado de Santa Catarina e não pela Secretaria da Saúde.

Os espaços são destinados a indivíduos que, ao cometerem um ato, a Justiça e a medicina entendem que eles não tinham plena consciência de suas ações. Esses estabelecimentos funcionam de forma diferenciada, oferecendo tratamento a pessoas que, conforme laudos médicos, podem ser internadas por um período de até três anos, com acompanhamento médico até que sejam consideradas aptas a retornar à sociedade – explica o juiz.

Até o início desta semana, havia 50 indivíduos internados nesses hospitais em Santa Catarina. No entanto, com a determinação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para o encerramento dessas instituições até 28 de agosto, surge a questão de onde esses pacientes serão tratados.

Com o encerramento dos hospitais de custódia, precisamos garantir que esses pacientes continuem recebendo o mesmo atendimento de saúde, agora em outros estabelecimentos vinculados ao sistema público. É uma articulação necessária entre o Poder Judiciário, o Poder Executivo e a Secretaria de Saúde – fala o juiz de direito Rafael de Araújo Rios Schmitt.

O magistrado diz ainda que o papel do Poder Judiciário de Santa Catarina é garantir que o tratamento seja mantido, preferencialmente em regime de internação, em outro instituto de saúde.

O tema é tão complexo e sem uma “solução simples” que semanalmente os tribunais e as secretarias de Administração Prisional e de Saúde precisam conversar, buscando encontrar soluções para essa transição complexa.

Ou seja, respondendo a pergunta inicial deste ponto do texto, é improvável que Irineu Carlos Nórdio, o Esquartejador de Videira, seja devolvido, no momento, para a sociedade, considerando que ele ainda não obteve alta médica. No entanto, com o fim dos Hospitais de Custódia o poder público ainda não tem uma resposta concreta de para onde ele será transferido.

E a Secretaria de Saúde, o que diz?

A Secretaria do Estado da Saúde (SES) é também uma parte muito importante desta articulação, já que será ela a responsável por executar o tratamento destes pacientes que hoje estão em hospitais de custódia.

Em nota enviada ao upiara.net, a SES disse que o tema é trabalhado para atender as prerrogativas da Resolução do Conselho Nacional de Justiça 487/2023 que institui a reforma psiquiátrica no âmbito do judiciário.

Hospitais de Custódia preocupam a população
Foto: Hospital de Custódia de Florianópolis, localizado junto ao Complexo Penitenciário da Agronômica.
Créditos: Divulgação


Em um esforço da Diretoria de Atenção Primária à Saúde (DAPS) da pasta, em junho de 2023, iniciou a formação da equipe Estadual de Avaliação e Monitoramento das Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei (EAP) no Estado de Santa Catarina para o trabalhar junto às pessoas em sofrimento psíquico em conflito com a lei – diz a nota da SES.

A pasta explica ainda que a equipe tem atuado para substituir os tratamentos psquiátricos feitos nos hospitais de custódia por tratamentos nas cidades de origem dos pacientes.

Ainda de acordo com a secretaria, atualmente são acompanhados 58 pacientes do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP). Do total, sete aguardam autorização do juiz e da família para voltarem para casa -e nem todas as famílias os querem de volta- . Quatro já estão fora dos hospitais de custódia e são acompanhados pelas secretarias de Saúde e pela Assistência Social.

A SES disse também que possui equipes especializadas de Atenção a Saúde Prisional, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e Serviço de Residenciais Terapêuticos. Há ainda projetos para cofinanciamento de implantações de CAPS em microrregiões, a mesma coisa acontece com os residências terapêuticos.

Aprendendo com quem já sabe

Parece um futuro distante demais e que soluções não existem. No entanto, em Goiás, por exemplo, não há nenhum Hospital de Custódia. Isto acontece não porque não há pessoas em sofrimento psiquiátrico que cometam crimes, mas por um sistema de saúde que é fortalecido pelo governo e muito planejamento.

A gerente de Saúde Mental da SES-GO, Nathália Silva, explica que, por lá, há um serviço da Secretaria de Saúde que já funciona há 18 anos. O nome chama atenção: “Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator”.

Há 18 anos, o Goiás possui este programa que é vinculado à Secretaria de Estado da Saúde e que acompanha indivíduos com transtornos mentais que cometeram crimes e estão sob medidas de segurança em serviços comunitários de saúde, como CAPS e Unidades Básicas de Saúde. Quando necessário, esses indivíduos são internados para estabilização de seu quadro clínico, retornando depois ao serviço de referência. O programa também conta com o apoio de serviços da rede de assistência social, como CRAS e CREAS. – diz a gerente de Saúde Mental, Nathália Silva.

Foto: Gerente Nathália Silva, da SES-GO, apresenta o Paili, durante o Congresso do Conasems, em Goiânia
Créditos: Divulgação

Atualmente, o projeto atende quase seis vezes mais que os pacientes que estão no Hospital de Custódia de Florianópolis. Ao todo são 349 pacientes.

O programa segue etapas específicas e trata os pacientes de forma mais humanizada. O projeto vai desde a aplicação da medida de segurança pelo juiz criminal até o acompanhamento psicossocial do paciente e sua família. Quando há indicação de desinternação, o programa providencia o tratamento ambulatorial com suporte familiar. Depois, a equipe faz relatórios que são enviados para o juízo da execução penal.

O que Santa Catarina já tem que pode ajudar?

Santa Catarina possui uma série de serviços e equipes especializadas que atendem a diferentes necessidades da população, especialmente aquelas relacionadas à saúde mental e ao uso de substâncias. Vamos entender o que cada um desses serviços oferece:

Equipes de Atenção à Saúde Prisional (PNAISP): São equipes que prestam serviços de saúde dentro de ambientes prisionais. Eles oferecem atendimento médico, psicológico e social para os presos, garantindo que recebam os cuidados de saúde necessários. Atualmente, Santa Catarina possui 25 dessas equipes implantadas.

Serviço de Residenciais Terapêuticos (SRT II): São residências especializadas que oferecem tratamento e suporte a pessoas que necessitam de cuidados intensivos, geralmente relacionados a problemas de saúde mental ou dependência química. O estado conta com seis desses serviços.

CAPS microrregionais: Os Centros de Atenção Psicossocial microrregionais são unidades de saúde mental que atendem a uma população específica de uma microrregião. Eles oferecem uma gama de serviços, incluindo atendimento ambulatorial, grupos de apoio e atividades terapêuticas. SC tem 19 desses centros.

CAPS I, II, III: Os CAPS são classificados em níveis de complexidade de atendimento. O CAPS I oferece atendimento básico, o CAPS II oferece atendimento de maior complexidade, e o CAPS III é especializado em casos de alta complexidade. Santa Catarina tem 47 CAPS I, 15 CAPS II, e dois CAPS III.

CAPS de Álcool e Drogas: Esses centros se especializam no tratamento de pessoas com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas. Eles oferecem programas de recuperação, aconselhamento e suporte para dependentes e seus familiares. SC possui 15 desses CAPS.

CAPS Álcool e Drogas III: São unidades de alta complexidade para o tratamento de dependência química, oferecendo serviços especializados para casos mais graves. O estado tem dois desses centros. 7.

CAPSi: O CAPSi é uma modalidade de CAPS que oferece atendimento específico para crianças e adolescentes com problemas de saúde mental. Santa Catarina conta com 10 dessas unidades.

Unidade de Acolhimento (UA): É um serviço que oferece acolhimento temporário e suporte a pessoas em situação de vulnerabilidade, geralmente aquelas que não têm onde morar ou que estão passando por crises graves. Existe apenas uma UA no estado.

Discussão sobre Hospitais de Custódia chega à Alesc

A discussão sobre os Hospitais de Custódia chegaram também na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc).

Na quarta-feira, dia 19, a Alesc vai realizar uma audiência pública para tratar do impacto da resolução do fim dos hospitais de custódia.

O debate foi proposto pelo deputado estadual e médico Vicente Caropreso (PSDB) e acontecerá em audiência conjunta das comissões de Saúde, Segurança Pública e Direitos Humanos.

Foto: Deputado Vicente Caropreso, que propôs o debate na Alesc
Créditos: Agência Alesc

O evento inicia às 9 horas e reunirá, além dos parlamentares, representantes do Poder Judiciário Catarinense, do Conselho Nacional de Justiça, do Governo do Estado, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SC), da Federação dos Hospitais de Santa Catarina (Fehosc), do Instituto de Psiquiatria de Santa Catarina (IPQ/SC), e Federação Catarinense dos Municípios (Fecam).

Conforme Vicente Caropreso, que é o vice-presidente da Comissão de Saúde da Alesc, o fechamento dos hospitais de custódia colocará em risco a sociedade ao liberar criminosos perigosos.

Eu tenho uma preocupação muito grande quanto ao destino dessas pessoas. Hoje são 50 pessoas consideradas inimputáveis pela Justiça por sua condição psiquiátrica que, por medida de segurança, estão no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) em Florianópolis. Muitos sem condições de alta médica. A maioria deles cometeu crimes hediondos gravíssimos, como homicídio e estupro. Deixar essas pessoas livres na sociedade e esperar que a Rede de Atenção Psicossocial dê conta dessa situação é uma situação temerária. Como será o acompanhamento dessas pessoas. Quem irá se responsabilizar para assegurar que elas tomem a medicação ou em caso de surto psicótico? – questionou o deputado.

Na opinião dele, a situação se torna ainda mais preocupante diante do número reduzido de leitos psiquiátricos para tratamento pelo SUS na rede hospitalar catarinense.

Na opinião do parlamentar, a audiência possibilitará visualizar a ampla repercussão do impacto da decisão do CNJ no estado. A posição de Santa Catarina será levada por ele ao Congresso Nacional.

Até o momento, nada foi decidido em Santa Catarina, mas o upiara.net continuará acompanhando o desenrolar da história.

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