Jogo jogado: a liberdade eleitoral em SC. Por Marcelo Peregrino Ferreira

Marcelo Peregrino é advogado e doutor em Direito.

Marcelo Peregrino Ferreira escreve artigo em que critica a crescente intervenção judicial no direito eleitoral brasileiro, argumentando que essa prática limita a liberdade de escolha do eleitor e enfraquece a democracia.

Há anos venho denunciando na academia – foi um mestrado, doutorado inúmeros artigos meio malcriados, em prol da liberdade e dos direitos políticos fundamentais, antes mesmo de ser moda e ganho eleitoral criticar o STF, o grande equívoco que se tornou o direito eleitoral brasileiro ao se desfazer de sua missão precípua de organizar as eleições e seguir para o terreno inóspito da escolha dos melhores candidatos, por decisão judicial.

Culpa dos parlamentares, meu e de todos nós, e dos movimentos para amealhar resultados eleitorais pela alteração das regras do jogo (o movimento pelo fim do financiamento por pessoa jurídica, a grande campanha pelo 41-A, o apoio à famigerada Lei da Ficha Limpa), o que teve repercussão imensa na construção do espírito do nosso tempo, o zeitgeist eleitoral.

Assim, nesse conjunto de noções que permeiam nossa vida eleitoral temos algumas máximas: 1. O eleitor é um santo, um anjinho de candura e virtude, mas também um ente ingênuo que precisa ser protegido de tudo, em especial da informação que circula; 2. Todo político é corrupto e mal-intencionado e capaz de corromper a vontade pura do eleitor, cuja virginal opção deve ser tutelada pelo Estado; 3. O melhor meio de proteger o santo do vilão é fazer do eleitoral um direito eleitoral do inimigo, tratando o vilão como tal, com desconfiança e presunções da vilania, por meio da proibição da propaganda, da limitação do uso de recursos, da criação exponencial das inelegibilidades (proibições de alguém se candidatar) não encontradas em qualquer lugar do mundo, tudo a ser decidido pela Justiça Eleitoral.

Para piorar, embutido no relacionamento desses três atores: eleitor, político e Justiça Eleitoral, surge a maior violência contra o regime democrático, desde os tempos idos da Ditadura Militar: a ideia de que o direito eleitoral é instrumento para melhorar a democracia e a administração pública pela exclusão de candidatos que não sejam probos, honestos e morais, proibindo o povo de escolher seus mandatários.

A democracia é regime do domínio do povo, cuja participação nos partidos e exercício do voto vai se aprimorando com o tempo. Esse aprendizado é surrupiado quando o cidadão perde o direito de livre escolher ou lhe é retirado o direito de conhecer as propostas dos candidatos, por exemplo – pela mitigação da propaganda eleitoral.

A festa cívica não tem mais a vivacidade de antes, porque o espírito do tempo impede as muitas formas de se conhecer as propostas dos candidatos. Propaganda eleitoral, de tão chata e regrada, é assistida apenas por militantes e seus advogados, exceção quando alguém decide sentar o sarrafo…

A eleição se tornou apêndice da decisão judicial que, em algum futuro, irá confirmar ou não o resultado da vontade popular.

O mundo, ao revés, já entendeu que a tutela estatal sobre as eleições, seja pela propaganda, seja pela decisão sobre quem o povo pode ou não votar, é tema da mais absoluta excepcionalidade, porque as proibições levam à perseguição das minorias e dos adversários, em qualquer lugar. Criam e trazem corrupção ao invés de afastá-la. As vedações das eleições brasileiras não têm paralelo em nenhum país do mundo: são excêntricas, causam medo e intensa preocupação, o que se sente da leitura do Código de Boa Conduta Eleitoral da Comissão de Veneza que inspira as eleições na Europa (por exemplo, a inelegibilidade deve ser fundamentada por interdição cujos motivos respeitem à saúde mental ou a condenações por crimes graves e impostas por um tribunal) e de todos os precedentes da Corte Interamericana Sobre Direitos Humanos.

Nosso complexo de vira-lata tem grande responsabilidade nisso e é um tantinho de desprezo e medo pelo povo, sem dúvida, quando devemos é ter orgulho de termos uma das mais seguras, confiáveis administrações eleitorais.

Mais eis que em Santa Catarina o TRE, sob a liderança de uma mulher, a Desa. Maria do Rocio e do Des. Carlos Alberto Civinski, Corregedor e Vice-Presidente, as coisas estão mudando. Para felicidade do téorico Marcelo e para desespero eventual do autor-advogado, o colegiado do tribunal já fincou raízes no culto à liberdade.

Quando o Des. Civinski cuidou em artigo de tratar a propaganda eleitoral um direito do eleitor não mais vendo-a como um instrumento de sedução indevida do imaculado eleitor, mas como uma forma valiosa de conhecimento pelo cidadão das propostas do candidato, não tenho dúvida que o zeitgeist eleitoral sofreu um abalo.

Logo depois o Juiz Márcio Schiefler Fontes veio também a público assentar que o debate público não pode se dar nas cortes, mas é de responsabilidade dos candidatos acentuando que “nenhum órgão judicial é fiscal da verdade de quem quer que seja”.

A cautela do Des. Otávio Minatto ao indeferir os direitos de resposta na semana passada, acompanhado pela unanimidade do colegiado do TRE, é lição para ser lida e estudada ao acentuar: “a manifestação opinativa, mesmo de natureza crítica, é credenciada pelos postulados constitucionais libertários do pensamento e da expressão. Anexa tal critério à diretriz regulamentar que determina a menor intervenção da Justiça Eleitoral”.

Na mesma medida, a firme atuação do Juiz Marcelo Pizolati em se manter como árbitro diante das refregas acaloradas da Capital lhe rendeu o elogioso apelido de “Leandro Vauden” do eleitoral ao “deixar o jogo seguir” na coluna do Upiara de 11.09.24.

As orientações foram claras e estão sendo cumpridas pela judicatura eleitoral: o jogo deve ser jogado. E a imprensa já percebeu que há reação democrática da Justiça Eleitoral catarinense, discreta, de deixar as eleições para o domínio do povo, naquilo que é possível nessa tensão perene que paira sobre cada juiz, como bem disse a Desa. Presidente Maria do Rocio: “Dos juízes do estado se espera muito. Um esforço hercúleo para compatibilizar as funções jurisdicionais — que são essenciais no Estado Democrático de Direito — com a organização e estruturação do pleito eleitoral, que é a pedra de toque numa democracia”.


Marcelo Peregrino Ferreira é advogado e doutor em direito pela UFSC.

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