O bolsonarismo entre a escuridão e a promessa

Esta coluna nasce de uma conversa inquieta com o jornalista Pedro Chavedar. Entre trocas de impressões, recortes de bastidor e algumas perplexidades compartilhadas, fomos alinhavando a leitura de um bolsonarismo que já vinha mudando de tom antes mesmo da prisão de Bolsonaro, e que agora apenas se deixa ver com mais nitidez.

A prisão de Jair Bolsonaro, neste sábado, não altera a rota do bolsonarismo: apenas revela com mais nitidez um deslocamento que já vinha acontecendo. O movimento se afasta, lentamente, da estética internacionalista que marcou sua fase mais barulhenta e entra numa camada mais messiânica, que vinha se acomodando nos bastidores desde o início do ano. A cena da vigília convocada por Flávio Bolsonaro não inaugurou nada, só dá forma pública ao que o clã já vinha experimentando como narrativa de sobrevivência.

Flávio não aparece de surpresa. Ele vinha ganhando espaço enquanto Eduardo se distanciava fisicamente, politicamente e emocionalmente do funcionamento real do movimento. O senador, sempre tratado como peça auxiliar do clã, foi migrando para o centro à medida que Eduardo colecionava ruídos com o PL e acumulava desgastes na Câmara. Quando a engrenagem política passou a exigir alguém capaz de dialogar com centrão, governadores e lideranças parlamentares, Flávio já estava no ponto de maturação necessário. A prisão só acelerou o que estava em transição.

Pedro Chavedar resumiu bem essa mudança quando escreveu que Eduardo sempre quis ser o representante do legado do pai, mas que, com a prisão, quem salta aos olhos é Flávio, “tido como o mais pragmático de todos”. A frase funciona porque expõe a disputa silenciosa entre os irmãos, mas também porque evidencia que o movimento não troca de porta-voz por tensão familiar, troca por necessidade política.

O desgaste do eixo internacionalista é parte central dessa história. O bolsonarismo globalizado, de Olavo a Bannon, passando por CPAC, Milei e Orbán, perdeu potência quando Bolsonaro deixou de ter capacidade operacional. Sem liderança ativa, a retórica geopolítica se dispersou. Era uma narrativa que dependia de um presidente no palco, não de um condenado tentando evitar nova ordem de prisão. Foi nesse vácuo que a camada messiânica começou a ganhar tração. Não surgiu da prisão, surgiu da perda de potência das velhas pautas.

Michelle Bolsonaro parece ter percebido essa mudança antes de todos. Desde o final de 2022, ela vem afinando a narrativa de um Bolsonaro escolhido, perseguido e protegido por Deus. Não é linguagem devocional, é linguagem messiânica, de combate espiritual, desenhada para reorganizar afetos dentro de uma base em estado permanente de tensão. Em 2025, com a escalada judicial, essa estética deixou de ser acessório e passou a ser eixo. Cada salmo publicado, cada referência à escuridão e cada apelo ao arrependimento de Alexandre de Moraes não são improviso.

Quando Flávio convoca a vigília e invoca o “Senhor dos Exércitos”, ele não cria um novo momento do bolsonarismo. Ele ocupa um espaço que Michelle vinha ampliando. A estética messiânica se torna operável politicamente nas mãos dele, e emocionalmente mobilizadora nas mãos dela. São funções diferentes, mas complementares.

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