O massacre no Rio e a eleição de 2026 – entre o sangue e o silêncio: quando a violência se torna discurso político. Por Ruy Samuel Espíndola

Artigo de Ruy Samuel Espíndola

Há massacres que ferem mais do que corpos — ferem a alma moral de um povo. O ocorrido no Rio de Janeiro, em 28.10.25, terça-feira, nos complexos da Penha e do Alemão, maior até que o do Carandiru (111 corpos), com mais de 130 cadáveres alcançados a bala e a facão, é desses eventos que rasgam o tecido civilizatório e nos obrigam a encarar o espelho do que nos tornamos: uma sociedade que naturaliza o intolerável. Em tempos sombrios, o horror parece já não nos espantar.

Há um ponto ético de não retorno — o limite em que a consciência moral de uma nação deveria interromper o passo e dizer “basta”. Quando o Estado cruza essa linha, não há mais política de segurança, há política de medo. E a violência, travestida de “ordem”, converte-se em instrumento de dominação.

A inteligência policial, investigativa, em segurança pública, existe e deve ser aplicada, justamente, para aplacar o crime, mas evitar a perda de vidas, seja de policiais, seja de criminosos e, sobretudo, de pessoas inocentes.

Não há método, causa ou justificativa que possa ser dada que confira legitimidade e sucesso de serviço público a operação que, até agora, registra 130 corpos, não identificados totalmente, salvantes os 04 policiais mortos.

A violência como método e linguagem de poder é característica dos extremismos, quaisquer que sejam suas bandeiras. Ambos, de direita e de esquerda, são repulsivos e corrosivos da democracia. Mas é inegável que, neste episódio, o extremismo de direita predomina, e sua gramática é a do terror legitimado.

Como cidadão, jurista e leitor atento da história, da filosofia e da ciência política, não posso deixar de ver nessa operação policial — tida como “bem-sucedida” — algo cuidadosamente arquitetado, trágico e juridicamente ilegítimo. Os sinais de finalidade eleitoral para 2026 são visíveis, e os fatos, quando lidos no tempo e no discurso de seus atores, sugerem uma coreografia calculada para o palco da política.

Jornalistas sérios e independentes têm reunido informações e dados contextuais que, segundo a minha interpretação, reforçam essa leitura (Marcelo Auler, Natuza Neri, Mônica Bergamo, Reinaldo Azevedo, etc). E minha experiência de quase quatro décadas na vida pública faz-me reconhecer, com amarga familiaridade, o cheiro da manipulação política travestida de “combate ao crime”.

O Direito Eleitoral, por mais sofisticado que seja em identificar abusos — de poder político, econômico, religioso ou midiático —, não dispõe de ferramentas suficientes para enfrentar fenômenos dessa natureza. O massacre também convoca o Direito Administrativo e o Direito Penal, mas sobretudo o Direito Constitucional, no ponto nevrálgico das competências federativas e da repartição do poder coercitivo entre União e Estados.

É preciso apurar, com rigor jurídico e moral, a responsabilidade de cada agente público — do governador ao policial que apertou o gatilho, desnecessariamente, desproporcionalmente, criminosamente, com ou sem ordem. A hierarquia institucional não pode ser escudo para a ilegalidade, nem a farda pode ocultar o abuso.

Em cada um desses ramos do Direito há normas válidas que exigem aplicação imediata diante dessa negação da civilidade. E o silêncio — o nosso silêncio — é a pior das cumplicidades.

Calar diante da barbárie é substituir o Estado de Direito por um Estado de violência, onde a lei perde sentido e o medo se torna política de governo. É admitir que a civilidade se dissolva no sangue e na indiferença.

E, quando isso acontece, não é apenas um povo que se perde. É a própria ideia de humanidade que se apaga.

Desterro, 02.11.25, dia de finados: que os mortos “falem” e os vivos não se calem.

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