O paradoxo Bolsonaro: Jair e Flávio podem salvar Lula pela segunda vez

Fred Perillo analisa a relação entre Flávio Bolsonaro e o desmanche da Operação Lava-Jato no governo Jair Bolsonaro, beneficiando Lula

Aviso aos navegantes: esta coluna é escancaradamente sobre política. Diferentemente das anteriores, voltadas a cenários políticos mas com fortes pitadas de marketing, esta é pura análise. 

E fiz questão de colocar, ao final, parte da base documental e jornalística a que recorri, mesmo sabendo que vivemos no mundo da pós-verdade e que, para muitos apaixonados, não importam os fatos, e sim suas próprias crenças.

Na minha opinião, o grande paradoxo político da história recente do Brasil é o fato de o presidente que ascendeu surfando na onda anticorrupção da Lava Jato ter sido o principal responsável por desmontar a operação, reabilitar seu maior rival e ainda pavimentar um novo caminho para que ele permaneça no poder.

Jair Bolsonaro se elegeu em 2018 prometendo enterrar o lulismo. Mas, ironicamente, foi ele quem recolocou Luiz Inácio Lula da Silva exatamente onde sempre quis estar: no centro do jogo.

Explico: tudo começa com o calcanhar de Aquiles do bolsonarismo, o caso das rachadinhas na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, envolvendo Flávio Bolsonaro e seu ex-assessor, o enigmático Fabrício Queiroz. Esse escândalo ganhou contornos dramáticos quando relatórios do Coaf apontaram movimentações financeiras atípicas ligadas a Queiroz, base para a investigação. Foi um fio puxado pela própria Lava Jato no Rio.

Portanto, 2019 foi o ano em que Bolsonaro percebeu que o maior inimigo de sua família não era exatamente Lula, e sim a própria lei.

Com o cerco apertando contra o Zero Um, ele tomou a decisão que mudaria sua história: blindar o filho a qualquer custo. Mal sabia ele que a conta a ser paga seria muito alta. Para impedir que a máquina anticorrupção alcançasse Flávio, Bolsonaro começou a desidratar as mesmas estruturas que o levaram ao Planalto. O tiro no pé começava a se configurar.

Veio então o primeiro ato do enredo: a indicação de Augusto Aras para a Procuradoria-Geral da República (PGR), ignorando a tradicional lista tríplice. Aras era visto como alguém disposto a domar a Lava Jato, domesticando procuradores e devolvendo tranquilidade aos políticos de estimação da República, sem distinção ideológica ou partidária. Esquerda e direita se beneficiariam. Nos bastidores, o pacto era simples: ninguém mexe com o meu filho, e eu não deixo o Congresso mexer com os seus ministros.

Reportagens da época mostram que o próprio Flávio articulou com senadores para enterrar a CPI da Lava Toga, evitando assim uma investigação sobre a cúpula do Judiciário, em um movimento politicamente convergente com setores da esquerda e do Centrão.

Em troca, decisões salvadoras surgiram em série: suspensão das provas do Coaf, reconhecimento de foro especial e anulação de quebras de sigilo. Manobras jurídico-processuais que favoreceram diretamente o núcleo político-familiar de Bolsonaro e justificaram o óbvio: a lei era dura, mas não para todos.

Enquanto isso, a Lava Jato derretia, com forças-tarefas sendo desmontadas, prisões revistas e conduções coercitivas demonizadas. O combate à corrupção definhava e o então presidente declarou, com boa dose de cinismo: “Acabei com a Lava Jato porque não tem mais corrupção no governo.”

Havia corrupção, é claro. Só não havia mais Lava Jato.

E o efeito colateral das atitudes de Bolsonaro foi monumental: a maior reviravolta judicial desde a redemocratização. Em 8 de março de 2021, o ministro do STF Edson Fachin anulou todas as condenações de Lula relativas aos processos da Lava Jato em Curitiba. Decisão posteriormente confirmada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em 15 de abril.

O suspeito passou a ser Sergio Moro e Curitiba, símbolo do combate à corrupção, perdeu sua competência. A porta da liberdade foi escancarada para Lula, e Bolsonaro, que tanto antagonizou com o petista, ajudou a abri-la.

No dia oito de novembro de 2019, Lula deixou a prisão e, três anos depois, subiu novamente a rampa do Planalto.

Agora, às portas de 2026, está se desenhando o segundo ato desse paradoxo. Bolsonaro, inelegível e politicamente fragilizado, faz uma aposta de altíssimo risco em Flávio como seu sucessor.

O filho carregará para o debate presidencial justamente o escândalo que sepultou o discurso moral original do pai. Flávio será a lembrança viva de que o bolsonarismo traiu sua própria promessa.

Nada poderia ser mais útil para Lula. Sidônio Palmeira, seu marqueteiro, a essa altura está esfregando as mãos.

Enquanto um aparecerá em público administrando o país, mesmo com tropeços e com popularidade vacilante, o outro carregará a marca de quem sobreviveu à Justiça graças a acordos e blindagens. A narrativa está posta para o petismo: de um lado o presidente reabilitado que venceu o sistema, do outro o candidato que sobreviveu por conchavos.

Se em 2022 Bolsonaro prestou um favor a Lula ao desmontar o sistema que o condenava, em 2026 ele pode fazer isso de novo. Flávio é o adversário perfeito: vulnerável e com alta rejeição. O presidente que dizia querer “acabar com tudo isso que está aí” acabou abraçando tudo isso que sempre esteve aí.

A política brasileira é feita de enredos imprevisíveis e, às vezes, perversos. Jair Bolsonaro prometeu enterrar o lulismo. Mas foi a obsessão em proteger Flávio que ressuscitou Lula, primeiro nas urnas e agora, talvez, em nova vitória.

Não acredito sinceramente que a candidatura de Flávio vá vingar. Mas, se vingar, será o segundo presente de seu pai para Lula: o primeiro judicial, o segundo político.

No fim das contas, Bolsonaro não parece interessado em salvar o Brasil, mas sim, e sobretudo, proteger a própria família.

Isso não quer dizer que Lula também não pense primeiro nos seus ao governar, vide a indicação de Jorge Messias para ministro do Supremo. Mas essa é outra história que ainda será contada por aqui.

Agora, a pergunta que não quer calar: e a direita não bolsonarista, o que fará diante desse tabuleiro armado?

Para os incrédulos e para quem, provavelmente, baterá em mim nos comentários, aqui estão algumas fontes da época:

Caso das rachadinhas e Queiroz. Investigação baseada em relatórios do Coaf e atuação do MP-RJ (CartaCapital)

Investigação contra Flávio Bolsonaro suspensa até decisão do STF sobre dados do Coaf (Portal de Notícias do STF, 2019)

Provas anuladas no caso Coaf de Flávio Bolsonaro (Portal do STF, 2021)

Flávio Bolsonaro atuando para barrar a CPI da Lava Toga (Gazeta do Povo)

Extinção da força-tarefa da Lava Jato na PGR sob Augusto Aras (JOTA)

Relembrando controvérsias de Aras na PGR e alinhamento com Bolsonaro (CNN Brasil)

Anulação das condenações de Lula na Lava Jato pelo STF, decisão de Fachin (Agência Brasil, 8/5/21)

STF confirma anulação das condenações de Lula no plenário (Agência Brasil, 15 /4/21)

Lula elegível novamente e fortalecimento político após as decisões do STF (El País Brasil)

Caso Queiroz: resumo jornalístico com histórico e desdobramentos (Wikipédia com fontes jornalísticas)

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