Há muitos anos analisar o comportamento online deixou de ser um detalhe da minha atividade profissional. É o centro dela. Produzir conteúdo, desenhar estratégias e atender clientes ocupa tempo, mas nada consome mais energia do que tentar entender como pensa e como reage a população brasileira quando não está vestindo uma máscara para alguém.
Isso exige ir além do post que viraliza, do comentário mais curtido e do gráfico. Exige atravessar sociologia, pesquisas de opinião, leitura massiva de dados e, sobretudo, aprender a identificar padrões de frustração que se repetem em escalas diferentes. O que aparece como exceção num post isolado vira regra quando se observa milhões de interações.
Escrevo esta coluna em voo, entre Recife e o Galeão, depois de fechar mais um monitoramento. Mas a reflexão não nasce exclusivamente dos dados. Ela nasce de uma fissura pequena, quase invisível, na forma como os brasileiros vêm se relacionando com o ambiente digital e, por consequência, com a política. Uma fissura que cresce rápido e sem alarde.
Desde o fim do ano passado passaram a circular análises apressadas dizendo que as redes sociais estariam em declínio. O diagnóstico é confortável para quem não quer olhar com atenção. Os números mostram o oposto. O Brasil viveu um dos períodos mais intensos de conversação pública de sua história recente, com crescimento de volume, manutenção de engajamento e expansão em praticamente todos os nichos.
As redes não diminuíram. Elas se tornaram mais duras, mais agressivas e menos tolerantes. Algo mudou. E mudou rápido.
A política, que já vinha sendo empurrada para uma personalização extrema, perdeu os últimos restos de mediação. O que antes ainda simulava debate hoje se resume a agressão, repetição e certezas absolutas. Não há mais convencimento. Há exaustão. Os comentários deixaram de ser espaço de troca para se tornarem depósitos de raiva.
Uma esquerda incapaz de formular uma pauta que dialogue com o cotidiano encontra uma direita igualmente incapaz de produzir algo além de reação e ressentimento. Ambas falham no essencial. Nenhuma delas entrega horizonte. Nenhuma delas parece minimamente conectada à vida concreta da população.
Isso não produziu distensionamento político. Produziu desprezo.
Desprezo pela política, pelos governos, pelas instituições e pela promessa cada vez mais distante de melhoria de vida. Um cenário especialmente dramático para os mais jovens. O esforço individual passou a ser percebido como uma aposta mal feita, um jogo onde as regras mudam sempre que alguém poderoso corre risco de perder.
Poucos temas escancaram isso com tanta clareza quanto o sistema de justiça. O descrédito é generalizado. Vai da percepção de impunidade cotidiana ao apoio explícito a atos de justiça privada. Em maio, em um relatório sobre segurança pública em São Paulo que analisou mais de 1,2 milhão de comentários, a conclusão era inequívoca. A população não acredita que a justiça funcione para todos.
Hoje, ao observar as menções ao STF, esse sentimento aparece ainda mais cru. Não se trata apenas de ideologia. O que está em jogo é a percepção de privilégio. De um sistema que protege a si mesmo, que se fecha, que decide em sigilo e que nunca explica suas escolhas para quem paga a conta.
É desse caldo que emergem figuras que se apresentam como antissistema enquanto operam perfeitamente dentro dele. Personagens que exploram o cansaço coletivo, a humilhação cotidiana e a sensação de abandono. Pablo Marçal, Cristina Graeml, a estética dos prefeitos tiktokers e boa parte do Congresso que performa indignação fazem parte do mesmo fenômeno.
Isso tem nome. Antipolítica.
O Brasil não está isolado nesse processo, mas aqui ele ganha contornos mais perigosos. Endividamento crônico, insegurança permanente, serviços públicos em colapso e uma economia que não entrega melhora perceptível empurram milhões para uma sensação de fracasso individual. As redes sociais, com suas vitrines de sucesso constante, funcionam como amplificadores dessa frustração.
A raiva que emerge desse cenário não pertence à direita nem à esquerda. Ela atravessa classes, regiões e identidades. É uma raiva sem projeto, mas não sem direção.
O debate público deixou de ser uma disputa entre campos ideológicos e se transformou numa longa confissão coletiva sobre o fracasso do país em oferecer futuro. Isso se expressa na sucessão de episódios que já parecem banais. Congressistas votam para salvar adversários. No dia seguinte o STF corrige. Milhões ficam sem luz por eventos climáticos previsíveis. Banqueiros são presos, soltos e blindados por sigilo. Processos gigantescos contra grande grupos criminosos como o PCC prescrevem. Relações íntimas entre política, justiça e dinheiro são expostas sem qualquer consequência prática.
Nada disso é abstrato. Tudo isso é lido pela população como prova empírica de que o sistema não funciona, não aprende e não responde.
Não é difícil entender o que irrita o brasileiro.
Não é difícil perceber que a vida real, na microeconomia do dia a dia, melhora muito pouco.
O difícil é encarar o que vem depois.
Porque quando uma sociedade inteira passa a acreditar que nada funciona, ninguém responde e ninguém paga, a história mostra que o próximo passo raramente é bom.





