Luan Ono Rodrigues escreve artigo em que analisa o crescimento da população em situação de rua em Florianópolis e denuncia a resposta da gestão municipal, marcada pela negligência e repressão.

Florianópolis, capital catarinense celebrada por suas praias e qualidade de vida, esconde uma realidade de profundas contradições sociais. Enquanto figura entre as capitais
com maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil, seu centro urbano convive com um crescimento alarmante da população em situação de rua. Essa dualidade revela o que podemos chamar de “as duas ilhas de Florianópolis”: de um lado, a cidade voltada ao turismo e à especulação imobiliária; de outro, a ilha dos invisíveis, onde seres humanos são tratados como obstáculos à “ordem urbana”.
A gestão municipal tem respondido a essa questão por meio de um misto de negligência e repressão. Tal postura se materializa na ausência de políticas habitacionais efetivas – o município não possui um programa de habitação, não há banheiros públicos acessíveis no centro da cidade, inexistem programas de aluguel social ou de assistência social efetiva, o restaurante popular foi fechado, e o serviço de resgate social foi cortado. Soma-se a isso a criminalização da pobreza, evidenciada por atuações do Executivo Municipal, como a Lei nº 11.134/2024, que institui a chamada “internação humanizada” medida que, na prática, autoriza a remoção compulsória de pessoas em situação de rua, em flagrante violação à Política Nacional para População em Situação de
Rua (Decreto nº 7.053/2009) e às decisões do STF na ADPF 976.
O caso de Florianópolis não é mera exceção, mas síntese de um modelo de gestão urbana que transforma o direito à cidade em um privilégio. Enquanto isso, os “indesejáveis” seguem sendo varridos para as franjas do visível, numa repetição atualizada do Brasil escravocrata que sempre tratou a pobreza como caso de prisão e marginalização.
A criminalização da população em situação de rua no Brasil contemporâneo é fruto de um processo histórico de exclusão que remonta ao período pós-abolição, quando os antigos escravizados foram “libertados” sem qualquer suporte estatal, sendo entregues às mazelas da sociedade. Instituiu-se em mesmo período um aparato repressivo que, desde o Código Penal de 1890 com o crime de vadiagem,que passou a punir a pobreza como delito. O direito penal operou (e ainda opera) por meio da distinção entre pessoas e “inimigos”, aplicando
seletivamente a repressão a grupos considerados perigosos — notadamente negros, pobres, pessoas em siutação de rua, usuários de drogas, entre outros. Esse legado colonial permanece vivo na arquitetura hostil, nas internações compulsórias e no tratamento da pobreza como caso de polícia que é comum no município.
Tal arquitetura, nomeada como “arquitetura hostil” e as políticas de internação involuntárias são a materialização do ódio aos pobres. Não querem resolver o problema, querem desaparecer com os pobres da área urbana. Além disso, há uma associação direta de raíz aporofóbica entre a presença dessas populações e o aumento da violência urbana, reforçando estereótipos que impossibilitam sua inclusão social – importa destacar, que não se pode falar em “ressocialização” dessas pessoas quando, de fato, essas pessoas nunca foram sequer socializadas.
A população em situação de rua é um grupo heterogêneo, composto por indivíduos com trajetórias e realidades distintas. Sua condição é resultado de múltiplos fatores, como o desemprego, a crise habitacional, a dependência química, os transtornos mentais, a desestruturação e o abandono familiar – leia-se, neste último caso, as experiências de pessoas LGBT+, que frequentemente enfrentam rejeição e expulsão do convívio familiar e comunitário em razão de sua orientação sexual ou identidade de gênero. Esse processo de exclusão reforça a marginalização e contribui para o aumento da vulnerabilidade social. A população LGBT+ e negra em situação de rua, portanto, sofre uma dupla invisibilização: por sua condição socioeconômica, sua raça e/ou sua identidade dissidente, sendo alvo de discriminação, violência e negligência institucional.
Em 2024 o Prefeito de Florianópolis, Topázio Silveira Neto, iniciou a produção de reels no Instagram e vídeos na plataforma TikTok com o objetivo de engajar a população e influenciar a opinião pública em relação à situação de rua. Esses vídeos curtos, divulgados nas redes sociais, é uma estratégia direta de comunicação para alcançar um grande número de pessoas. Com essa ação, o prefeito busca não apenas informar sobre ações e medidas do governo, mas também direcionar o debate público e reforçar suas posições políticas, uma das temáticas repetidas nos vídeos do prefeito e de sua base na Câmara Municipal tem sido estereotipar e transformar as pessoas em situação de rua em inimigos públicos.
A retórica adotada pelo prefeito e por sua base na Câmara Municipal tem vinculado a presença de pessoas em situação de rua à insegurança pública e à criminalidade. O objetivo é moldar a percepção pública e justificar medidas de segurança mais rígidas. Em um dos primeiros reels, Topázio afirmou que a situação evoluiu de um problema de assistência social e saúde para uma questão de segurança. Ele sugeriu medidas drásticas contra aqueles que “não querem ajuda”, incluindo abordagens policiais constantes:
“Se for vagabundo, vamos levar para a polícia, vamos ver antecedentes, se tiver
mandado em aberto, vai preso. (…) a nossa segurança agora vai focar em combater
aquilo que tem incomodado a população” – Topázio Neto em fevereiro de 2024.
Ao empregar termos como “vagabundo” e “bandido”, o prefeito contribui para a estigmatização da população em situação de rua, reforçando a ideia de que são outsiders à sociedade, merecedores de exclusão, ao mencionar “combater aquilo que vem incomodando muito a população nas últimas semanas”, reitera que essa população não faz parte da sociedade, nega-lhes até mesmo a condição de sujeitos.
Essa narrativa constroi e reforça a imagem dessa população como responsável pela violência urbana, alimentando um ciclo de medo, repúdio e exclusão. Assim, a mídia e as lideranças políticas reforçam uma ideologia de controle social, tratando essas pessoas não como vítimas de um sistema excludente, mas como ameaças à ordem.
A resistência da cidade a políticas como o Housing First (experiência de sucesso ao redor do mundo) revela o cerne do problema: a recusa em reconhecer a população em situação de rua como sujeitos de direitos. Enquanto cidades na Europa e no Canadá reduzem o número de pessoas nas ruas com moradia digna e apoio psicossocial, Florianópolis investe em políticas de contenção e repressão. Vale lembrar que é mais barato oferecer moradia do que manter estruturas de perseguição, porém certos grupos políticos preferem alimentar a ilusão de pureza social e aplacar a sensação de impunidade.
A presença crescente da população em situação de rua na cidade reflete as desigualdades sociais e a precarização do acesso a direitos fundamentais. A gestão pública precisa romper com a lógica da repressão e adotar soluções estruturais e inclusivas, capazes de garantir dignidade a essas pessoas. Ampliar políticas habitacionais, reformular os serviços de assistência social e valorizar estratégias de inclusão são medidas urgentes e inadiáveis.O caso de Florianópolis evidencia que os atuais aparelhos de “assistência social” não operam como instrumentos de proteção ou promoção do bem-estar coletivo, mas como mecanismos de contenção e silenciamento. São mobilizados não para garantir direitos, mas para preservar os privilégios de poucos à custa da marginalização sistemática de muitos. Sem essa mudança de paradigma, a política de exclusão seguirá vigente, aprofundando a divisão entre os “incluídos” e os “indesejáveis”. Uma cidade mais justa exige uma abordagem centrada nos direitos humanos, onde todos tenham acesso à moradia, ao trabalho e à vida digna.
Luan Ono Rodrigues é graduando em Direito e Ciências Econômicas, assessor parlamentar na Câmara Municipal de Florianópolis.