Daniele Cima Cardoso escreve artigo sobre a ausência de políticas públicas efetivas para população em situação de rua, o racismo estrutural e a falácia da escolha individual.

É comum observar no Brasil, e não somente nele, tanto em cidades pequenas, como em metrópoles, pessoas que utilizam as ruas como formas precarizadas de moradia. O alto e crescente número de famílias e indivíduos vivendo nas ruas do país, parece ocupar um lugar comum no cenário social que compõe as cidades brasileiras. O fato de pessoas utilizarem marquises, praças, ruas, viadutos, prédios ou casas abandonadas como espaço de moradia, tornou se um fenômeno naturalizado.
A invisibilidade diante deste fenômeno é reforçada inclusive nas pesquisas censitárias brasileiras. De acordo com o IPEA (2023) o Brasil não possui dados oficiais sobre a população em situação de rua “[…] nem o censo demográfico decenal, nem as contagens populacionais periódicas incluem entre seus objetivos sequer a averiguação do número total da população não domiciliada” (Duarte, 2023, jornal O Globo). A única pesquisa realizada nacionalmente ocorreu entre os anos de 2007 e 2008 e foi coordenada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) através das Secretarias Nacionais de Assistência Social (SNAS) e de Avaliação e Gestão da Informação (SAGI).
A pesquisa revelou que a população em situação de rua é composta na sua grande maioria por trabalhadores, pois 70,9% exerciam atividades remuneradas e 58,6% informaram ter alguma profissão. As atividades mais destacadas foram catador de material reciclável, flanelinha, construção civil, limpeza e carregamentos. Já os dados apresentados pelo Ministério de Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) lançados em setembro de 2023[1] apontam que 68% das pessoas em situação de rua no Brasil já trabalhou com carteira assinada. Contrariando assim, a narrativa social de que as pessoas que vivem nas ruas sobrevivem da mendicância. Portanto, os dados revelam e contribuem para a quebra de estigmas que rondam a situação de rua, considerada por uma parcela da sociedade e de agentes públicos como expressão de questões ou escolhas de ordem individual.
Outro dado bastante importante sobre o perfil da população em situação de rua no Brasil é o marcador sobre raça. Em 2008, 67% das pessoas entrevistadas se declararam negras (soma entre pardos e pretos), em 2022 o cenário continua o mesmo, temos uma população em situação de rua que tem cor, gênero e classe estampado no seu perfil: 51% se declararam pardas e 17% pretas. Ou seja, a população em situação de rua no Brasil é também caldo da herança escravista brasileira. Lembrando, que fomos o último país a abolir a escravidão, e a transição do trabalho escravo para o trabalho livre se dá num processo de mais de 400 anos de escravidão.
Portanto, negar ou conduzir o debate sobre a população em situação de rua para um lugar moralista ou de achismos, com discursos superficiais de escolha individual, não aponta para a realidade e tão pouco responde de forma efetiva à situação posta. Reafirmamos que o aumento da pobreza, da informalidade, do trabalho precário, desemprego, alto custo de manutenção material da vida e violência são essencialmente relevantes na conformação deste fenômeno.
Para aqueles que preferem a ótica do comparativo, já que para muitos os Estados Unidos seria exemplo de sociedade promissora e civilizada, sem desigualdades, a terra das oportunidades, no ano de 2024, aproximadamente setecentas mil pessoas estavam vivendo nas ruas daquele país. Os estados com as maiores taxas de pessoas em situação de rua são aqueles que tem os índices mais altos de gastos com moradia, educação, saúde, etc. São cidades ricas com altas taxas de pobreza.
Do ponto de vista liberal as necessidades humanas são encontradas de forma individual via mercado, com retóricas vinculadas a igualdade de oportunidades e o livre acesso individual aos bens e serviços. Nesta lógica, um trabalhador que ganha um salário mínimo tem a mesma possibilidade de matricular seu filho em uma escola de ensino privado que o dono da empresa. A conta não fecha, não temos os mesmos acessos, não temos as mesmas oportunidades e vivemos em uma sociedade profundamente desigual. No fim das contas, estamos muito mais perto de experenciar uma situação de rua do que ter um jatinho particular.
Quando tratamos das políticas públicas de atendimento a população em situação de rua presenciamos um desmonte diário das frágeis políticas a tão duras penas conquistadas. Não temos investimentos em equipes qualificadas, não temos serviços de acolhimento com vagas suficientes, não temos centros de referências especializados, ou seja, não temos investimentos reais. Políticas públicas que deveriam atuar de forma articulada como assistência social, saúde, educação, habitação, emprego e renda acabam sendo reféns de gestores que não possuem conhecimento técnico e teórico das políticas as quais gerenciam.
Um exemplo clássico que tem pulverizado em várias cidades brasileiras é a prática da internação compulsória ou involuntária, que tem como pano de fundo uma racionalidade higienista, punitivista e que cumpre a função de identificar os “anormais”, aqueles que fogem a norma. Para validar essa prática o poder público cria um cenário social em que a única e possível forma de intervenção junto a essa população seria a internação compulsória, criando assim um consenso social em torno do tema. Tal prática se traduz em uma medida imediatista, autoritária e obviamente paliativa. Deste modo, aqueles que deveriam garantir o mínimo de dignidade humana, agem associando pobreza, punição e periculosidade. Em tempos de vídeos curtos, mensagens com frases de efeito e pouco conteúdo, cria se um cenário de hostilidade e incitação à violência, aqui especificamente contra a população em situação de rua. É preciso estar atento e forte!
[1] As informações constantes do documento tiveram como base de dados informações o Cadastro Único (CadÚnico) e do Registro Mensal de Atendimentos (RMA), relacionado à Saúde o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) e o Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (SISAB). Portanto, trata se de um levantamento e não de pesquisa.
Daniele Cima Cardoso é assistente Social – Mestre em Serviço Social e Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC. Pesquisadora do tema – População em situação de rua e as respostas do Estado Brasileiro frente ao crescente número de pessoas que utilizam as ruas como formas precarizadas de moradia e sobrevivência.