Por que as pessoas estão investindo mais em qualidade de vida do que em exames?

Em um mundo onde os avanços tecnológicos na saúde parecem não ter limites, um valor antigo ganha nova vida: a prevenção quaternária. O nome é complicado, mas a ideia é simples e poderosa: evitar medicalização desnecessária e excesso de intervenções médicas que podem acabar fazendo mais mal do que bem.

Charles Tesser, professor do departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), explica que o termo é novo, mas o princípio é tão antigo quanto a medicina, vindo do famoso juramento de Hipócrates: “Primeiro, não prejudicar”.

A prevenção quaternária é um compromisso ético dos profissionais da saúde de não causar danos a seus pacientes nem medicalizar sem necessidade aspectos da vida. A ideia é não transformar em um problema de saúde várias dificuldades e adversidades da vida, que podem ser resolvidas de outras maneiras e fazem parte do crescimento humano, sem a necessidade de um médico (ou outro profissional de saúde) e seus diagnósticos e tratamentos.

A cilada dos exames

O professor Tesser dá um exemplo prático: a dor nas costas. Muitas vezes, exames de imagem como raio-x, tomografia ou ressonância são pedidos sem necessidade. Esses exames podem mostrar pequenas alterações na coluna que não são a causa da dor, mas que acabam assustando o paciente e o médico.

A partir daí, começa uma cascata de exames e tratamentos, muitas vezes caros e invasivos, que não resolvem a dor original e podem até causar novos problemas.

Ele conta um caso real de uma conhecida que, após um exame de imagem preventivo desnecessário, iniciou uma verdadeira maratona de procedimentos. Uma imagem suspeita levou a uma biópsia por laparoscopia, que exigiu uma consulta anestésica e um exame do coração, cujo resultado suspeito levou a uma consulta cardiológica, que indicou um cateterismo. A mulher quase morreu durante o cateterismo por causa de uma complicação, apenas para descobrir, após ter saído da UTI, para onde foi por causa da complicação do cateterismo, que não tinha doença alguma no ovário. “Tudo poderia não ter ocorrido se não tivesse sido pedido o primeiro exame”, ele lamenta.

Quando menos é mais

A ideia de que evitar exames também é uma forma de cuidar é reforçada pelo Dr. Marcello Alberton Herdt, médico responsável técnico pelos Programas de Medicina Preventiva da Unimed Grande Florianópolis.

Ele aponta que exames desnecessários trazem consigo riscos desnecessários: exposição à radiação, ansiedade por resultados pouco relevantes e até tratamentos invasivos com efeitos colaterais. Para ele, cada intervenção tem um custo — não apenas financeiro, mas também emocional.

Um exemplo prático e bastante debatido é o exame de PSA para rastreamento de câncer de próstata. “O PSA, quando solicitado fora de um contexto clínico ou protocolo urológico específico, pode causar mais mal do que bem”, afirma Herdt.

O exame pode detectar alterações que nunca se tornariam um problema e levar a diagnósticos excessivos (o chamado sobrediagnóstico), que resultam em biópsias e tratamentos agressivos com riscos sérios, como incontinência urinária e impotência sexual. Por isso, grandes organizações de saúde no mundo todo, incluindo o Ministério da Saúde brasileiro, não recomendam o PSA como exame de rotina para todos os homens.

Para ajudar pacientes e médicos a tomarem decisões informadas, existem ferramentas como os “decision aids”. Esses materiais mostram, de forma clara, os riscos e benefícios envolvidos. Por exemplo, em um grupo de 1.000 homens que fazem o exame, apenas um pode evitar a morte por câncer de próstata, enquanto de 20 a 30 podem sofrer efeitos adversos de tratamentos que talvez nem fossem necessários.

A campanha internacional “Choosing Wisely” (“Escolhendo com Sabedoria”), que chegou ao Brasil, reforça esse movimento: menos pode ser mais. “Evitar o excesso de exames é uma forma ética, moderna e segura de cuidar”, conclui o Dr. Herdt. A dica é simples: na sua próxima consulta, pergunte sobre o porquê de cada pedido de exame e participe ativamente das decisões sobre sua saúde.

O descanso faz parte

O descanso, muitas vezes deixado de lado na correria do dia a dia, é um pilar fundamental da Prevenção Quaternária. Segundo a psicóloga Camila de Oliveira Leal, muitos problemas de saúde mental, como ansiedade, fadiga crônica e burnout, são resultado de uma vida sem pausas. Ela explica que, antes da medicalização, a solução pode estar em simplesmente reorganizar a rotina para incluir momentos de descanso.

Conforme a psicóloga, o descanso não é apenas uma forma de se afastar de uma rotina exaustiva, mas “também é uma oportunidade de reconexão com aquilo que é importante para nós e com a vida que desejamos levar”. Para Camila, ele pode assumir várias formas, como as pausas digitais, que incentivam a desconexão das telas para buscar interações sociais reais.

É preciso descansar. Foto: Unsplash/Divulgação

Para quem tem uma rotina agitada, a psicóloga sugere o uso de “micropausas” — pequenos momentos ao longo do dia para se desligar do trabalho ou dos estudos. Essas pausas, segundo ela, podem ser simples, como tomar um chá ao ar livre, ler algumas páginas de um livro, ou praticar a atenção plena ao caminhar, percebendo como cada um dos sentidos é ativado.

Como explica a psicóloga, o mais importante é que o descanso seja algo singular, respeitando o ritmo e as possibilidades de cada pessoa. Trata-se de incluir esses momentos na rotina de forma realista para promover a saúde e o bem-estar de maneira sustentável, em vez de recorrer a soluções médicas desnecessárias.

Foco na qualidade de vida e no esporte

Letícia Calisto Torres Scheffmacher, uma arquiteta e produtora de conteúdo de 27 anos que promove hábitos e rotinas saudáveis, nos traz uma perspectiva profunda sobre a importância da alimentação e do esporte. Essas práticas são pilares da Prevenção Quaternária, uma abordagem da saúde que busca evitar intervenções médicas desnecessárias e foca em soluções que melhorem a qualidade de vida.

Um estudo recente do Ministério da Saúde, divulgado em setembro de 2023, reforça a importância desses hábitos. A pesquisa, chamada VIGITEL, apresenta dados sobre excesso de peso, hábitos alimentares, e a prática de atividade física, e identifica que a má alimentação e o sedentarismo são os principais fatores de risco para doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes e problemas cardiovasculares. Isso reforça a ideia de que o investimento em hábitos saudáveis é a forma mais eficaz de prevenção. Para Letícia, a qualidade de vida e a longevidade estão diretamente ligadas às nossas escolhas diárias.

Letícia acredita que uma boa alimentação pode prevenir doenças. Foto: Arquivo Pessoal.

A Alimentação como Matéria-Prima

Para Letícia, a alimentação é a “matéria-prima” da construção do nosso corpo. Ela cita a explicação de um nutricionista para ilustrar seu ponto: sempre que nosso corpo constrói músculos, ossos, hormônios, pele e cabelo, ele está em um processo de anabolismo. Assim como em qualquer construção, a qualidade do resultado depende da matéria-prima utilizada. Se a matéria-prima é de baixa qualidade, a construção também será. Por isso, somos literalmente o resultado do que comemos ao longo dos anos. A arquiteta reforça que, ao nos preocuparmos em oferecer uma alimentação de qualidade ao corpo, estamos investindo na nossa saúde e na nossa longevidade.

E ela não está sozinha. O Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde, reforça essa ideia. O documento destaca que uma alimentação inadequada é um dos principais fatores de risco para doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes e problemas cardiovasculares. O guia ressalta a importância de basear a alimentação em alimentos in natura e minimamente processados, e de evitar os ultraprocessados.

“Esses hábitos são os que chamamos de angulares, que significa que, ao cultivá-los, desencadeiam um impacto positivo em todos os outros. Por exemplo, ao se exercitar, aos poucos você começa a se alimentar melhor, seu sono melhora, os níveis de estresse e alterações emocionais ficam controlados e a qualidade de vida aumenta.”

A arquiteta conta, ainda, que seu diagnóstico de Adenomiose e Síndrome do Intestino Irritável a colocou diante de uma escolha: o uso contínuo de medicamentos ou uma rotina saudável. Ela optou pela segunda opção, que lhe permite “entregar ao meu corpo o que ele precisa pra viver bem e não deixar espaço para que nenhum dos diagnósticos obtidos evoluam e tragam consequências futuras”.

Letícia conclui que o melhor presente que podemos dar a nós mesmos e aos outros é uma vida longa e de qualidade, e que essa vida é nutrida por bons hábitos diários.

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