Racismo Religioso em Santa Catarina: Quando o silêncio também é violência. Por Milton Felipe Pinheiro

Artigo de Milton Felipe Pinheiro assistente Social graduado pela UFSC, Mestrando no Programa de Desenvolvimento Regional da FURB, vive no Território Goj Konã do povo Laklãnõ Xokleng no Parque Nacional da Serra do Itajaí em Blumenau.

Ao longo de 2025, diversas denúncias de racismo religioso foram registradas em Santa Catarina. Contudo, tais ocorrências não receberam a visibilidade necessária e seguem sendo tratadas com silêncio e descaso institucional. Por trás dessa ausência de repercussão, esconde-se uma perseguição sistemática contra os povos tradicionais de terreiro, cujas práticas religiosas e modos de vida têm sido alvo crescente de intolerância, criminalização e violação de direitos.

Na cidade de Mafra, no Planalto Norte, um Terreiro de Umbanda foi invadido, depredado e incendiado por dois suspeitos, presos em fevereiro de 2025. O crime, ocorrido entre 8 e 9 de dezembro de 2024, não apenas destruiu o espaço físico, mas atingiu o que há de mais sagrado: a memória coletiva e o vínculo espiritual de uma comunidade. O fogo que queimou aquele terreiro é o mesmo que historicamente tenta apagar o sagrado negro e indígena deste país.

Em setembro, o litoral catarinense testemunhou outro episódio de violência simbólica. Vovó Luiza, considerada a Mãe de Santo mais velha do Brasil, com 111 anos, foi despejada de seu terreiro em Balneário Camboriú, sob a justificativa de risco estrutural. A demolição do espaço interrompeu rituais e separou a comunidade do seu chão sagrado. Privar uma anciã de tocar suas giras é privar o povo de sua própria ancestralidade. É mais do que uma remoção: é uma forma de apagamento.

Em outubro, em São José, um terreiro teve seu culto interrompido pela Polícia Militar, sob alegação de “perturbação do sossego”. Policiais invadiram o espaço, constrangendo a Mãe de Santo e a comunidade presente. O episódio reflete uma lógica de controle racializada: aquilo que vem dos povos de terreiro é
tratado como ruído, como desordem, enquanto templos cristãos raramente sofrem tais intervenções.

Esses três episódios, ocorridos em um único estado, não foram noticiados pela grande ou citados nos espaços políticos de poder como nossa Assembleia Legislativa, tão pouco são fatos isolados. São expressões do racismo estrutural que permeia as instituições, a mídia e o imaginário social.

Os terreiros, no entanto, são mais do que espaços religiosos. São territórios de memória. Neles, pulsa a herança africana, indígena e cabocla; neles se reconta a história que o colonialismo tentou silenciar. São lugares onde a oralidade, o corpo e a natureza constrói outros mundo, destoantes do mundo colonial.

O ataque aos terreiros é, antes de tudo, um ataque às memórias ancestrais que sustentam a identidade brasileira e catarinense. É uma tentativa de romper a continuidade dos saberes, interditar os tambores, silenciar as ervas, apagar os pontos riscados e sepultar as vozes daqueles que sempre falaram com a terra e com os espíritos. É o gesto violento de quem tenta calar a história que não está nos livros: a história viva, cantada e dançada nos terreiros.

Essa perseguição sistemática revela o avanço de um reacionarismo de extrema direita, que se ancora no racismo religioso para reafirmar velhas hierarquias coloniais. Trata-se de um projeto que transforma o ódio em política,
mirando os terreiros como alvos simbólicos da sua cruzada moral. Ao fazê-lo, busca enfraquecer as expressões culturais e espirituais que mais desafiam a lógica do embranquecimento e do autoritarismo.

Garantir espaços de denúncia e visibilidade é, portanto, uma questão de sobrevivência. O silêncio institucional e a omissão pública diante das inúmeras violações naturalizam um projeto de apagamento: um projeto que tenta desmantelar as redes de solidariedade, espiritualidade e resistência que os povos de terreiro tecem há séculos.

Em Santa Catarina, há terreiros que cantam em iorubá, ketu, nagô; que balançam seus maracás, defumam com seus cachimbos, riscam suas pembas e afirmam a continuidade de mundos que o colonialismo tentou destruir.

Mas há também, neste mesmo estado, um projeto amargurado que insiste em exaltar uma suposta “descendência europeia pura”, tentando reavivar a política de branqueamento e varrer os vestígios de um passado violento, escravocrata e sangrento — passado que o poder insiste em negar, mas que a memória dos
terreiros insiste em lembrar.

Os povos de terreiro, com seus cantos e suas folhas, seguem replantando o que o racismo tenta arrancar. São eles que sustentam, com o corpo e o axé, a continuidade de um Brasil que ainda resiste em ser negro, indígena e plural.

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