Por Eduardo Herculano, advogado criminalista.
O dramaturgo português e nobelista, José Saramago, cunhou em sua visionária obra “Ensaio sobre a Cegueira” a seguinte reflexão: “Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem”.

Porém, mais do que a poesia do texto, este serve de alerta para o risco de o Estado e seus órgãos de investigação se deixarem levar por uma cegueira institucional, especialmente quando se trata da exposição indevida da vida particular com base em denúncias anônimas.
No Brasil, o processo penal democrático ainda é recente e carrega traços herdados de um passado autoritário, fruto, também, de uma legislação antiga. Assim, o equilíbrio entre o poder punitivo do Estado e a proteção dos direitos fundamentais é indispensável.
Por conta disso, a Constituição e o Código de Processo Penal impõem limites claros: a mitigação de garantias, como à privacidade (art. 5º, inc. X, da Constituição), só pode ocorrer diante de justa causa, fundada em indícios mínimos de materialidade e autoria, e sempre sob controle jurisdicional efetivo. Contudo, a cegueira institucional se manifesta quando autoridades, movidas por excessos punitivos, relativizam direitos e garantias sob o pretexto de buscar respostas rápidas a hipóteses acusatórias frágeis.
O Supremo Tribunal Federal já decidiu que a simples verificação de procedência de denúncia anônima não autoriza a instauração de investigações invasivas, como a requisição de Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs), sem a formalização prévia de um inquérito policial ou procedimento investigatório criminal.
Nesse contexto, o STJ também firmou entendimento importante sobre o tema, fixando que: a solicitação direta de RIFs pelo Ministério Público ao COAF sem autorização judicial é inviável; e que o Tema 990 do STF não autoriza a requisição direta de dados financeiros sem autorização judicial. Do contrário, seria transformar o cidadão em alvo de “fishing expeditions”, violando o devido processo legal e esvaziando o entendimento do STF no Tema 990.
O caso recente envolvendo o advogado Nelson Wilians ilustra bem esse risco: apesar de sua vida financeira ter sido devassada por conta de supostas movimentações atípicas apontadas pelo COAF, não havia relação direta com o escândalo do INSS, tampouco justa causa para a exposição pública de seus dados e rotina pessoal.
Tal conduta revela uma preocupante tendência de parte dos órgãos de investigação de ultrapassar os limites legais, promovendo investigações baseadas em meras suspeitas ou denúncias anônimas, sem o devido filtro legal e judicial.
Em todos os casos, o Estado não pode, sob o pretexto de investigar, comprometer direitos fundamentais e acessar vidas privadas sem o devido processo legal. “Cegos que, vendo, não veem”, que Saramago nos inspire a enxergar, com clareza, os limites da lei e a necessidade de sua fiel observância.
Eduardo Herculano é advogado criminalista.