Rolê do Mocotó. Por João Marcos Buch

João Marcos Buch escreve artigo sobre a experiência de um grupo em uma caminhada pelo morro do Mocotó, em Florianópolis, destacando a história, desafios e resiliência da comunidade negra local. Através das vivências e relatos, reflete sobre injustiças sociais e a força do povo que resiste e transforma seu ambiente.

“O Mocotó é essa loucura, com passado, presente e futuro se misturando!”, resumiu nosso guia, orgulhoso e sincero, encerrando mais um “rolê”.

Rolê do Mocotó é como se chama a subida do morro para conhecer suas vielas, carreiros, escadarias, especialmente para conhecer sua gente e sua história. Havíamos nos reunido aos pés da comunidade, na rua Treze de Maio (dia da abolição de uma escravatura nunca verdadeiramente abolida), para, sob a orientação de um jovem, simpático e comunicativo rapaz negro, chamado Michel, nascido e criado no morro, fazermos o caminho para o alto, numa subida íngreme, que exigiria algum esforço.

A tarde de primavera estava ensolarada, sem uma nuvem no céu, um presente para nossos olhos, mas nem tanto para nossa pele, pois o calor parecia se tornar bem impiedoso. Só parecia, porque ele não foi notado, sequer foi objeto de reclamação, diante de tudo que vivenciamos.

Ao longo da subida, cruzando com moradores e seus afetuosos “boa tarde” e bondosos “deus abençoe”, tivemos aulas sobre o Mocotó e seu povo, formado em sua maioria por pessoas negras. Aprendemos que, antes chamado morro do Governo, o local recebeu o nome “Mocotó” porque, quando da construção da Ponte Hercílio Luz, há quase cem anos, os trabalhadores e marinheiros subiam encosta para se alimentar de mocotó, iguaria da localidade. Daí o nome: Morro do Mocotó.

Entre uma casinha e outra, soubemos que inicialmente a água da baia chegava aos pés do morro e a pesca ali, entre barqueiros, era disputada pelos moradores da ilha, sendo que primeiro se serviam os brancos, para depois se vender o resto aos negros.

Em carreiros estreitos e becos batizados com nomes de mulheres importantes na formação comunitária, ouvimos que há não muito tempo as meninas negras, ao descerem para o centro da cidade, tinham que vestir roupas em farrapos e fingirem-se de meninos, para não serem sequestradas e levadas para trabalhar em casas de famílias abastadas. Na sombra de uma marquise improvisada, escutamos que, em um passado ainda recente, homens eram recrutados para trabalhar no comércio e indústria, sob promessa de salário, e nunca mais voltavam para casa, perdendo-se na exploração de sua mão de obra.

No meio de escadarias cercadas de paredes lindamente grafitadas, resultado de iniciativas artísticas para adolescentes, ouvimos estarrecidos sobre abusos do poder estatal contra jovens negros, cujos tapas sofridos doíam menos que odiosas palavras como “negro nojento”. Em ladeiras de cimento, olhamos para os nossos pés, protegidos por calçados, para lembrar que ainda hoje muitos dos pés que pisam naquele chão, estão descalços e, o mais grave, que as chuvas já levaram embora o sangue caído sobre ele. “Mortes que poderiam ter sido evitadas, mas eles nunca quiseram”, falou a voz potente e emocionada de nosso guia, ao apontar para a laje.

Em frente à ACAM (Associação de Amigos da Casa da Criança e do Adolescente do Morro do Mocotó), nos encantamos com o projeto social que resgata e realmente salva meninos e meninas que, sem oportunidades como as da ACAM, muito provavelmente não sobreviveriam à pobreza. Olhando para um carreiro distante, descobrimos que por ele os moradores do Mocotó ajudaram a salvar enfermos do vizinho hospital de Caridade, que ardeu em chamas no ano de 1994.

Descansando em uma pracinha, fomos levados a imaginar o passado onde famílias marcantes na história do Mocotó, como os Bitencourt e os Lopes, entre tantas outras, acolhiam e dividiam o pão para quem chegasse, onde benzedeiras e parteiras, como Dona Luci, curavam e traziam à luz vidas e mais vidas. Através de templos religiosos sincréticos, sentimos a luz em frente ao terreiro de Mãe Claudete, em uma energia de paz e acolhimento que quase se solidifica no ar. Assim como o passado, presente e futuro se misturavam no morro, nossos sentimentos transitavam entre o deslumbre e o espanto, entre o suspiro e o assombro.

Angela Davis, ativista norte americana, diz: “Você tem que agir como se fosse possível transformar radicalmente o mundo. E você tem que fazer isso o tempo todo”. Ela está certa! Lá no topo, quando o sol já se aproximava do poente, olhando para a estonteante beleza da ilha de Florianópolis, suas pontes, com o Cambirela aos fundos, liderando a cadeia de montanhas que se debruça por sobre o azul do mar, tive a certeza que, por mais que o povo do Mocotó tenha sofrido com a extrema injustiça, injustiça que até hoje persiste, na ausência de saneamento básico, falta de mobilidade e equipamentos da rede pública, injustiça odiosa do racismo e da aporofobia, esse povo tem em suas veias a força de uma nação.

Esse povo, junto com todos os outros dos morros da antiga Desterro, são a essência do Brasil, e seu sorriso é a marca de uma população que resiste. Sim, um dia esse povo levantará a chama da vitória cidadã. A bem da verdade, já está levantando.

Que rolê incrível, que pessoas admiráveis! E que brinde inesquecível fizemos ao final, no Pico do Mané!


João Marcos Buch é autor e desembargador substituto do TJSC.

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