
A pergunta ecoa em consultórios e rodas de conversa: “Se eu não tenho o HIV, o que eu tenho a ver com isso?”. A resposta é direta e inequívoca: todos nós temos a ver com o HIV. Esta é uma questão que ultrapassa o diagnóstico individual e se estabelece como um pilar fundamental da saúde pública e da cidadania.
Se estamos vivos, temos relações sociais e, muitas vezes, sexuais, o que nos conecta à realidade de quem vive com o vírus e à responsabilidade de frear novas infecções, e de quebra, acabar com o estigma e preconceito de quem vive com HIV.
A doença, a AIDS, e aqui é crucial diferenciar: HIV é o vírus, AIDS é a síndrome, o estágio avançado da infecção, que mata, embora o cenário tenha melhorado drasticamente.
Segundo o mais recente boletim epidemiológico divulgado pelo Ministério da Saúde, o Brasil registrou uma queda de 13% nos casos de mortes por AIDS entre os anos de 2023 e 2024. Os números caíram de mais de 10 mil para 9,1 mil óbitos, marcando o menor registro nas últimas três décadas.
Essa queda notável é um testemunho da eficácia do Tratamento Antirretroviral (TARV) e das políticas de prevenção. No entanto, ela não é um convite ao relaxamento.
Segundo o médico infectologista Martoni Moura, vivemos um paradoxo.
“Muitos jovens passaram a perder o medo do HIV, influenciados pela eficácia dos tratamentos modernos. Essa mudança de percepção — compreensível, mas perigosa — pode levar ao aumento de comportamentos de risco. Dados recentes mostram que parte das novas infecções ocorre justamente entre jovens que não se percebem vulneráveis, que não buscam testagem e desconhecem ferramentas como a PrEP. A melhoria da qualidade de vida, embora um triunfo, não pode ser confundida com a ausência de risco”, comenta.
O médico reforça ainda que nos últimos dez anos, o cuidado às pessoas que vivem com HIV passou por uma transformação profunda. Os avanços no tratamento antirretroviral permitiram não apenas maior sobrevida, mas uma qualidade de vida incomparavelmente melhor, com esquemas mais simples, menos tóxicos, maior adesão e supressão viral sustentada. Hoje, uma pessoa em tratamento adequado pode trabalhar, estudar, amar, formar família e envelhecer de forma plena, e isso representa uma das maiores conquistas da saúde pública mundial.
Para Moura, entre essas conquistas, destaca-se o conceito “Indetectável = Intransmissível” (I=I). Quando a carga viral permanece indetectável por pelo menos seis meses, não há transmissão sexual do HIV. Ou seja, contentamento correto é possível não passar mais HIV para outra pessoa.
“Esse marco mudou paradigmas clínicos e sociais, trazendo liberdade, dignidade e redução do estigma para milhões de pessoas. Na prática, I=I reforça que o tratamento não é apenas uma ferramenta de cuidado individual, mas também de prevenção altamente eficaz, diminuindo a cadeia de transmissão”, fala.
Ao lado dessa revolução, consolidou-se o modelo da Prevenção Combinada, um conjunto de estratégias que atuam em diferentes momentos da exposição ao vírus: antes, durante e depois. No Brasil, destacam-se quatro pilares:
• PrEP (profilaxia pré-exposição): eficaz, segura e cada vez mais acessível, especialmente para populações-chave.
• PEP (profilaxia pós-exposição): fundamental em exposições recentes, com janela de até 72 horas.
• Testagem ampliada: diagnóstico precoce salva vidas, reduz transmissão e facilita o início imediato do tratamento.
• I=I: reforça a importância da adesão e do acompanhamento, transformando o tratamento em ferramenta preventiva.
Hoje, essas estratégias não competem entre si: elas se complementam e permitem respostas personalizadas conforme o contexto, população e vulnerabilidade individual.
A epidemia silenciosa
A complexidade da questão foi aprofundada em um diálogo com uma ativista da causa, que também vive com HIV. Os pontos levantados refletem sua experiência e militância, sendo aqui apresentados sob a condição de anonimato, conforme seu direito.
O primeiro ponto é: avanços no tratamento do HIV transformaram a infecção de uma sentença em uma condição crônica, mas a percepção de que a AIDS acabou é perigosamente falsa. A complexidade da epidemia no Brasil reside hoje em sua fragmentação e na vulnerabilidade de grupos específicos, expondo falhas nas atuais estratégias de comunicação e prevenção.
O problema não se limita à falta de acesso a medicamentos, mas à dificuldade de fazer a mensagem de prevenção e diagnóstico ressoar em públicos que, por motivos opostos, negligenciam o risco: os jovens e os idosos.
Segundo o Boletim Epidemiológico de HIV e Aids de 2024, em um estudo divulgado pelo Ministério da Saúde do Brasil, o número de novos casos de HIV na população idosa (60 anos ou mais) cresceu 416% no período de dez anos, entre 2012 e 2022.
Esse aumento significa que o total de novos diagnósticos anuais na faixa etária saltou de 378 (em 2012) para 1.951 (em 2022).

E ela continua:
“Há também a questão da transmissão vertical, que ocorre da mãe para o filho durante a gestação. A falta de testagem contínua das gestantes, após o acompanhamento inicial, representa um problema sério. Além disso, após o nascimento da criança, a atenção à saúde materna pode ser insuficiente, com foco exclusivo no bebê. A necessidade de testar a mãe, especialmente considerando que ela pode continuar sexualmente ativa com outros parceiros, é fundamental. Da mesma forma, a falta de testagem dos pais, tanto no início quanto durante e após a gravidez, contribui para um ciclo de infecção e transmissão”, diz.
“O silenciamento em relação à AIDS é um problema grave, levando à percepção de que a doença não existe mais. Apesar da importância de discutir a PrEP, PEP e o HIV, é crucial falar sobre a AIDS, pois os números de casos avançados são preocupantes. Embora algumas cidades, como Florianópolis, apresentem resultados positivos em alguns grupos específicos, as estatísticas em outros grupos são alarmantes. A imprensa local, por vezes, não promove o debate sobre o tema, o que reflete a necessidade de levar a informação a todos os públicos, e não apenas a um grupo específico”, completa.
Ao entender que o tratamento eficaz torna a pessoa Indetectável = Intransmissível (I=I), a sua atitude de acolhimento e ausência de julgamento se torna uma das ferramentas de saúde pública mais poderosas. Ao exigir que a prevenção seja debatida abertamente e sem preconceitos em todas as idades, você combate o silêncio que permite que a epidemia avance.
A luta contra o HIV/AIDS hoje é uma prova de maturidade social: exige que a sociedade olhe além do indivíduo que vive com HIV e reconheça a responsabilidade coletiva na prevenção. O fim da epidemia virá não só com o acesso a antirretrovirais, mas com o fim da indiferença social.





