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8 de setembro de 2024

Um olhar jurídico sobre a nomeação de Filipe Mello no governo do pai. Por Marcelo Peregrino

Marcelo Peregrino é advogado e doutor em Direito.

O filho do governador Jorginho Mello, o advogado Filipe Mello, foi nomeado para um cargo de livre nomeação no governo estadual. Abordo aqui esse tema, porque se há algo carecendo de resgate são os direitos fundamentais tão maltratados e tão desvirtuados da promessa da Constituição de 1988.

A Carta, ainda que peque muito pela falta de clareza e definição dos direitos políticos, inseriu a cidadania como um fundamento da República (art. 1º, inc. I), fixou condições de elegibilidade (art. 14, § 3º) e vedou a cassação desses direitos, salvo as exceções do cancelamento da naturalização, incapacidade civil absoluta, condenação criminal transitada em julgado, recusa de cumprimento de obrigação geral e improbidade administrativa.

Nosso pacto fundante assinalou ainda que outras formas de inelegibilidade deviam estar previstas em lei complementar, exclusivamente, para a proteção da “normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso”. Dentre outras considerações, afastou até a deliberação de emenda constitucional tendentes a abolir o voto direto, secreto, universal e periódico e os direitos e garantias individuais (art. 60).

Há uma outra faceta dos direitos políticos sempre olvidada. O direito de participar da vida pública de seu país é um direito político fundamental, garantida a acessibilidade aos cargos, empregos e funções públicas daqueles que preencham os requisitos estabelecidos em lei, conforme previsto na Constituição de 1988 (art. 37, inciso I).

Teria sido muito mais fácil a reprodução da definição dos direitos políticos da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos que garante a todos o gozo dos seguintes direitos e oportunidades: a) de participar da direção dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos; b) de votar e ser eleitos em eleições periódicas autênticas, realizadas por sufrágio universal e igual e por voto secreto que garanta a livre expressão da vontade dos eleitores; e c) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país.

Assim, pincelado o cenário, fala-se na nomeação do filho do governador Jorginho Mello para uma função no governo e o eventual conflito com a Súmula 13 do Supremo Tribunal Federal (STF), que veda o nepotismo no âmbito da Administração Pública.

A nomeação pressupõe confiança e esta melhor pode ser encontrada na família, porque na política essa se altera mais que as nuvens no céu, como no conhecido soneto de Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades/ Muda-se o ser, muda-se a confiança/ Todo mundo é composto de mudanças/ Tomando sempre novas qualidades”.

Uma leitura apressada poderia induzir o leitor desatento a concluir que um pai não poderia nomear seu filho para um cargo público, independentemente da natureza do cargo e que a busca pela confiança familiar estaria vedada. No entanto, sob a ótica jurídica, dois aspectos devem ser observados: a doutrina dos “atos de governo” e o direito convencional de qualquer cidadão às funções públicas de seu país, consagrado no art. 23, “c” da Convenção Americana.

Atos de governo são atos eminentemente políticos, não sindicáveis pelo Poder Judiciário – que permitem ao Chefe do Executivo cumprir com seus deveres constitucionais, sem a intervenção de outros ramos. Tributária do princípio da separação de poderes, sua elaboração doutrinária remonta aos primórdios do Estado liberal, com destaque para o paradigmático “arrêt Laffite”, de 1822, sobre a renda concedida por Napoleão à Princesa Borghese e transferida ao banqueiro Laffite, lembrado naquele texto clássico de Odete Medauar.

A doutrina do political question que, nos EUA, vem desde 1801 no célebre caso Marbury v. Madison (McCulloch v. Maryland, 1819), tem sofrido sensíveis alterações (Luther v. Borden, 1849, Baker & Carr, 1962), mas ainda ilumina o caso concreto. São atos políticos a declaração de guerra, a assinatura de um tratado internacional, a concessão da extradição, a decisão do Parlamento sobre o impeachment, a recusa em apresentar projeto de lei, a sanção, promulgação e publicação das leis, decretação do estado de defesa e de sítio, celebração da paz e a nomeação para cargos de natureza política, como eu já pontuei em artigo para o “Globo” sobre a nomeação de Eduardo Bolsonaro para o cargo de embaixador, em 21/09/2019.

Com efeito, a mitigação da Súmula 13 veio com a exclusão dos cargos de natureza política, exceção para os casos de inidoneidade moral e inequívoca falta de razoabilidade como a de indicar alguém sem qualquer formação técnica para o cargo almejado (Reclamação n. 28.024, Min. Roberto Barroso e também RE 579.951, Rel. Min. Ricardo Lewandowski; Rcl 12.658/DF, Rel. Min.Gilmar Mendes; Rcl 14.549/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski; e Rcl 6.650-MCAgR, Rel.ª Min.ª Ellen Gracie). Não se pode falar em inidoneidade do nomeado e muito menos a sua falta de qualificação técnica, únicas barreiras jurisprudenciais para a assunção no cargo, pois se cuida de renomado e bem estabelecido advogado.

Sob outro aspecto, do direito fundamental do nomeado, a Convenção Americana assegura ao parente do Chefe do Executivo o direito fundamental de participar do governo. Dentre as restrições admitidas dessa garantia (idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz competente, em processo penal), o parentesco não se mostra idôneo para impedir alguém do exercício das funções públicas.

Sob qualquer olhar, tanto da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que tem excepcionado a regra sumulada e garantido a permanência de parentes de autoridades públicas em cargos políticos, sob o fundamento de que tal prática não configura nepotismo, seja pelo direito fundamental do nomeado, não há qualquer empecilho à nomeação aqui tratada.

Finalmente, a nomeação responde também à insofismável demonstração de transparência. Ao invés de ter auxiliares e conselheiros ocultos, o governador Jorginho optou pela prática pública e republicana de seus atos, o que é mais que recomendável ao colocar sob escrutínio público a atuação do novo secretário da Casa Civil.


Marcelo Peregrino Ferreira é advogado e doutor em Direito.

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