Por Carla Ayres
A questão do aborto é um tema controverso e amplamente debatido ao longo dos anos, não apenas na América Latina, mas em todo o mundo, inclusive no Brasil. Ela ocupa uma posição central nas discussões sobre justiça reprodutiva, direitos reprodutivos e liberdade das mulheres e pessoas que gestam, trazendo reflexões sobre até que ponto posições religiosas hegemônicas devem influenciar os debates jurídicos e
parlamentares em um Estado constitucionalmente laico.
Para além disso, a Pesquisa Nacional do Aborto de 2021, estudo realizado pela Universidade de Brasília e pela Anis Instituto de Bioética, revelam que 1 em cada 7 mulheres teve um aborto até os 40 anos, evidenciando um cenário em que milhares de mulheres e pessoas que gestam recorrem a procedimentos clandestinos no país.
Não se trata de “opinião”, tampouco devemos transformar o assunto numa discussão maniqueísta entre “a favor” e “contra”. O aborto é uma realidade, e as formas pelas quais ele é acessado representam um desafio significativo para a saúde pública, causando impactos no sistema de saúde.
Mulheres pobres e periféricas, em sua grande maioria negras, morrem inserindo talos de mamonas e cabides em uma tentativa desesperada de encerrar a gravidez. Mulheres brancas, de meia idade e da classe média buscam nos comércios paralelos medicações para por fim no processo. Pessoas que gestam colocam suas vidas em risco para realizar o procedimento, apesar de ser proibido no Brasil, salvo três situações.
Hoje, existem três possibilidades para realização do aborto legal no país: quando a gravidez é resultado de um estupro, quando coloca em risco a vida da pessoa gestante e quando o feto não desenvolve o cérebro (anencefalia). Ainda nesses casos, os entraves enfrentados para acessar esse direito são inúmeros: os hospitais de referência para interrupção de gestações são escassos e territorialmente mal distribuídos; faltam informações relacionadas ao procedimento em canais oficiais do Estado; falta capacitação e respaldo institucional para os responsáveis pela prestação deste atendimento, etc.
Os números, fatos e estudos científicos mostram que, como gestores e representantes parlamentares, é fundamental abordá-lo como uma questão que precisa ser tratada no âmbito da saúde pública. Proibir não inibe a prática, só a torna clandestina, fazendo com que tenha consequências graves para a saúde de quem precisa realizar o procedimento.
Precisamos ter a coragem de olhar além do moralismo, descriminalizando e legalizando, pois o aborto requer políticas e serviços adequados, no lugar de estigmas e punição. Isso significa garantir acesso seguro e digno aos serviços de saúde reprodutiva, educação sexual abrangente e apoio psicossocial para as mulheres que enfrentam essa situação.
Ao adotarmos uma abordagem baseada em evidências, podemos realmente olhar para os desafios relacionados ao aborto e promover uma gestão digna e mais igualitária para as mulheres e pessoas que gestam.
Como feminista com formação em ciências políticas e humanas é evidente para mim que o tema do aborto também envolve questões de liberdade pessoal, planejamento familiar, projeto individual, saúde e justiça reprodutiva. Pois tomar decisões sobre a vida reprodutiva é fundamental para a igualdade de gênero e a realização pessoal. A proibição do aborto é uma poderosa ferramenta do patriarcado, pois retira das mulheres e pessoas que gestam o direito de autoderminação sobre suas vidas e corpos
dificultando a construção de um país mais justo.
A igualdade de gênero esbarra na função biológica a que as mulheres foram submetidas ao longo da história. Evidentemente, o ciclo gravidez-parto-puerpério dificulta a igualdade na divisão da tarefa do cuidado e, ainda, é usado para justificar uma subalternização e exclusão das mulheres na política, trabalho, estudo, lazer, etc.
Além disso, reforça os papéis de gênero que naturalizam o trabalho reprodutivo e doméstico como uma responsabilidade exclusiva das mulheres. Essa hiperresponsabilização das mulheres na reprodução e no cuidado é acompanhada do abandono paterno e da ausência do Estado.
Não podemos deixar de ter em vista a violência sexual a que crianças, meninas e mulheres estão submetidas. Apesar do aborto não ser a solução para essa questão, ele é uma possibilidade de garantir dignidade, saúde e impedir a revitimização em casos de estupro. Só que a negação deste direito acontece repetidamente. Em dezembro, por exemplo, testemunhamos uma situação na Grande Florianópolis em que uma adolescente de 14 anos vítima de estupro foi impedida de realizar a interrupção da
gravidez, prevista em lei desde 1940.
Dados do Anuário de Segurança Pública de 2022 mostraram que ocorreram mais de 66 mil estupros no Brasil naquele ano, sendo que “mais de 70% (37 mil) delas eram vulneráveis, categoria que inclui pessoas consideradas incapazes de consentir o ato sexual, o que inclui menores de 0 à 13 anos” trazendo a tona algumas questões importantes: qual vida importa para aqueles que desejam proibir o aborto?
Sobre o que realmente estamos falando quando proibimos o acesso ao aborto? E, principalmente, a quem interessa a manutenção do controle dos corpos das mulheres, crianças e pessoas que podem gestar?
Carla Ayres (PT) é vereadora em Florianópolis.