Uma proposta para a regionalização do saneamento em Santa Catarina. Por Ramiro Zinder

Ramiro Zinder escreve artigo sobre o debate em Santa Catarina sobre a regionalização do saneamento básico, criticando o modelo de microrregiões do PLC 0040/2023 por sua possível inconstitucionalidade e propondo a adoção de unidades regionais como alternativa mais viável e constitucional.

O Novo Marco Legal do Saneamento, como é conhecida a Lei Federal nº 14.026, de 15 de julho de 2020, estabelece que a regionalização dos serviços deve ser instituída pelos estados mediante lei ordinária. Diante disso, vinte e três estados brasileiros se mobilizaram para aprovar essas legislações, que é uma das condições para alcance das metas de universalização até 2033.


Em Santa Catarina, nas últimas semanas, um intenso debate se formou acerca do Projeto de Lei Complementar nº 0040/2023, de autoria do Governo do Estado, que institui a regionalização em atendimento à Lei Federal. Enviado em regime de urgência num primeiro momento, o PLC apresentava uma única microrregião composta pelos 295 municípios. Após a retirada do regime de urgência e tramitação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), o próprio Governo, por meio de emenda substitutiva global, transformou o estado em três microrregiões, com base num estudo encomendado pela CASAN e desenvolvido pela FUNDACE. Sem entrar no mérito de um possível conflito de interesse nessa contratação, inevitavelmente, com a aceleração do projeto para aprovação, diversas entidades da sociedade civil organizada, imprensa, associações de municípios, prefeitos e até mesmo vereadores ergueram-se contra o PLC sob alegações de inviabilidade econômico-financeira, perda de autonomia dos municípios e inconstitucionalidade.


A verdade é que sim, o PLC da forma como se apresenta, seguindo os moldes de projetos de lei aprovados em estados como o Paraná, incorre em vieses de inconstitucionalidade, uma vez que as microrregiões criadas não atendem as diretrizes do parágrafo 3º do art. 25 da Constituição Federal, composta de agrupamento de Municípios limítrofes e instituída nos termos da Lei nº 13.089, de 12 de janeiro de 2015, o Estatuto da Metrópole. Isto porque existe a implementação de estruturas de microrregiões sem a observância do critério evidenciado de interesse comum previsto na Lei Federal nº 11.445, de 05 de janeiro de 2007, em específico:

Art. 3º Para fins do disposto nesta Lei, considera-se:
[…] XIV – serviços públicos de saneamento básico de interesse comum: serviços de saneamento básico prestados em regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões instituídas por lei complementar estadual, em que se verifique o compartilhamento de instalações operacionais de infraestrutura de abastecimento de água e/ou de esgotamento sanitário entre 2 (dois) ou mais Municípios, denotando a necessidade de organizá-los, planejá-los, executá-los e operá-los de forma conjunta e integrada pelo Estado e pelos Munícipios que compartilham, no todo ou em parte, as referidas instalações operacionais. (grifo nosso)

Art. 8º Exercem a titularidade dos serviços públicos de saneamento básico:
[…] II – o Estado, em conjunto com os Municípios que compartilham efetivamente instalações operacionais integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, instituídas por lei complementar estadual, no caso de interesse comum. (grifo nosso)

Ocorre que não há, nas microrregiões criadas no PLC 004/2023, compartilhamento de instalações operacionais de infraestrutura de abastecimento de água e/ou de esgotamento sanitário entre 2 (dois) ou mais municípios, denotando a necessidade de organizá-los, planejá-los, executá-los e operá-los de forma conjunta e integrada pelo estado e pelos munícipios que compartilham. Mais que isso, ao estabelecer que nos casos de interesse comum a titularidade dos serviços de saneamento básico é compartilhada entre o estado membro e os municípios que compartilham infraestruturas, o inciso II do art. 8º acabou por transformar o estado no titular de tais serviços quando prestados de forma regionalizada o que, por si só, retira a autonomia dos municípios sobre os processos de concessão de água, esgoto, resíduos sólidos urbanos e drenagem.


Não é à toa que tramita no Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7653 que questiona a constitucionalidade da interpretação que tem sido atribuída à adoção de microrregiões para a prestação regionalizadas do saneamento em diversas leis estaduais de teor semelhante ao da proposta do Governo de Santa Catarina.


Apesar do volume de críticas e questionamento ao PLC catarinenses, não se percebe um debate mais frutífero sobre como solucionar essa questão. Neste sentido, cabe verificar o que diz o Novo Marco Legal do Saneamento, em seu art. 3º:


VI – prestação regionalizada: modalidade de prestação integrada de um ou mais componentes dos serviços públicos de saneamento básico em determinada região cujo território abranja mais de um Município, podendo ser estruturada em:
a) região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião: unidade instituída pelos Estados mediante lei complementar, de acordo com o § 3º do art. 25 da Constituição Federal, composta de agrupamento de Municípios limítrofes e instituída nos termos da Lei nº 13.089, de 12 de janeiro de 2015 (Estatuto da Metrópole);
b) unidade regional de saneamento básico: unidade instituída pelos Estados mediante lei ordinária, constituída pelo agrupamento de Municípios não necessariamente limítrofes, para atender adequadamente às exigências de higiene e saúde pública, ou para dar viabilidade econômica e técnica aos Municípios menos favorecidos;
c) bloco de referência: agrupamento de Municípios não necessariamente limítrofes, estabelecido pela União nos termos do § 3º do art. 52 desta Lei e formalmente criado por meio de gestão associada voluntária dos titulares;

Embora a Lei Federal apresente três opções de regionalização, por alguma razão o Governo de Santa Catarina decidiu insistir no modelo de microrregiões, incorrendo no erro de outros estados e se tornando passível de inconstitucionalidade. O turning point dessa discussão é alterar o foco das chamadas microrregiões para o outro modelo, também previsto no Marco Legal do Saneamento, que é o das unidades regionais de saneamento, a exemplo do que fizeram os estados do Rio Grande do Sul e Minas Gerais, por exemplo.


Ao se utilizar o formato de unidades regionais de saneamento, ao invés de microrregiões, tem-se um modelo que objetiva dar viabilidade econômica e técnica aos Municípios menos favorecidos, por meio de agrupamentos de municípios já existentes, seja pelo formato 11 (onze) regiões metropolitanas, e não microrregiões, prevista pelo Fórum Nacional de Entidades Metropolitanas (FNEM), seja pelo modelo de divisão por bacias hidrográficas estabelecido pelo próprio Governo de Santa Catarina:

Neste modelo proposto, a adesão dos municípios seria discricionária, tal como já ocorre na governança dos diversos consórcios intermunicipais existente no estado, mantendo a autonomia dos municípios para suas tomadas de decisão sobre os serviços de saneamento básico. Além disso, a possibilidade de unificar a operação dos serviços permitirá que cidades menores possam se juntar aos grandes municípios limítrofes para dar viabilidade técnica nos estudos de concessão do abastecimento de água e esgotamento sanitário, bem como resíduos sólidos urbanos e drenagem.


A solução para o debate sobre o formato de regionalização do saneamento em Santa Catarina passa por uma mudança do ponto de vista sobre o modelo. É preciso deixar de falar em microrregiões e começar a falar sobre unidades regionais, permitir a adesão voluntária (e não compulsória) dos municípios a essas unidades e ajustar a governança para que o Governo Estadual não acabe se tornando o titular dos serviços públicos de saneamento. Nesta direção, será possível apaziguar as expectativas dos diferentes atores envolvidos nesse processo e permitir uma tramitação tranquila e com o diálogo necessário na Assembleia Legislativa.


Ramiro Zinder é consultor do BID e foi diretor de Desestatização e Parcerias na Secretaria de Estado da Fazenda no governo Carlos Moisés.

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