Artigo de Amanda Cunha, Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Goiás. Especialista em Direito Eleitoral e Ciências Penais. Host do podcast A Eleitoralista. Professora e Escritora. Membro da ABRADEP

Dois dos maiores partidos do Brasil, e atualmente os mais rivais, Partido dos Trabalhadores (PT) e Partido Liberal (PL), têm protagonizado uma “guerra” virtual acirrada e polêmica nos últimos dias.
Para além das desavenças e ataques de sempre, o tom mudou a partir de um vídeo feito pelo PT em que o rosto do ex-presidente Jair Bolsonaro aparece em um ventríloquo sentado no colo de nada mais, nada menos do que o presidente americano Donald Trump.
O vídeo, nitidamente feito por meio de Inteligência Artificial (IA), foi publicado nas redes sociais oficiais do partido no dia 11/07 e impulsionado mediante tráfego pago da Meta, atingindo cerca de 23 milhões de visualizações somente no instagram, além de mais de 2 milhões de impressões no facebook. Tudo isso ao custo aproximado de R$ 100.000 reais.
Tão logo viralizou, começou-se a perceber o estranhamento acerca do uso, inédito por um Partido Político até então, de uma crítica e conteúdo negativo, ainda que por meio de uma sátira, usando IA (para alguns, até mesmo por meio de deep fake – pela simulação dos rostos e vozes dos políticos atacados) e ainda promovido por meio de anúncio pago, aumentado consideravelmente seu alcance.
Pois bem. O estranhamento não é à toa, eis que em ano eleitoral, seja na campanha ou pré-campanha, é absolutamente proibido o impulsionamento para conteúdos desse tipo. E, quando há o uso de IA (para edição, melhora de imagem e voz, filtros, montagens de cenários de fundo e similares), deve haver essa informação mediante um rótulo, garantindo transparência ao eleitorado. As deep fakes, se fosse o caso, são absolutamente proibidas.
O problema é que todas essas regras são inerentes ao ano eleitoral e à propaganda eleitoral específica, vinculada a promover pré e candidatos, ainda que seja feita por meio dos partidos políticos. Isso não se confunde com as regras para a realização da propaganda partidária da legenda em si, que ocorre mesmo fora do período eleitoral e persegue seus próprios objetivos estatutários e ideológicos e não necessariamente de filiados ou mesmo potenciais candidatos.
É importante pontuar que o Partido Político, enquanto instituição, funciona e mantém diversas atividades para além daquelas atreladas necessariamente às eleições.
Para a propaganda partidária, no ano ímpar não eleitoral que estamos, não existem, portanto, as mesmas exigências que aquelas da propaganda eleitoral. O regramento sequer está na Lei das Eleições ou demais leis eleitorais, mas sim na Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096/95), que regulamenta todo funcionamento dessas entidades.
Sobre o assunto, em específico, consta permissão expressa para que possam efetuar impulsionamento de conteúdos com os recursos públicos do Fundo Partidário, sem qualquer menção a exigências correlatas ou mesmo sobre uso de IA.
Talvez o leitor e leitora esteja se perguntando, mas não deveria? E aqui reside a questão que trago à provocação.
De um lado, Partidos Políticos são Pessoas Jurídicas de Direito Privado com autonomia própria garantida constitucionalmente. De outro lado, são entidades que destinam-se a resguardar igualmente, também conforme prevê nossa carta magna, as regras do jogo democrático, a soberania nacional e os direitos fundamentais.
É por meio dos partidos políticos, inclusive, que operacionalizamos a nossa soberania popular, eis que eles possuem o monopólio das candidaturas nas quais votamos.
Bem, o Partido não infringiu nenhuma regra, eis que elas (ainda) não existem. A discussão que trago é se isso deve continuar dessa forma. Se em ano eleitoral há a preocupação para evitar que o debate se torne muito poluído, e até mesmo agressivo, com a vedação ao impulsionamento de conteúdos de ataque, sátira e ridicularização (mas não a proibição de sua criação e publicação, frisa-se), por que isso deveria ser permitido aos partidos agora?
E, ainda, com uso de deep fakes ou tecnologias de IA sem a devida informação às pessoas? Se a ideia é permitir um livre debate de ideias e proposições democráticas, sem influência de abusos de qualquer ordem, faz sentido permitir ecoar e amplificar sátiras e críticas com estes mecanismos?
Há que se encontrar um equilíbrio entre não engessar a criatividade e a liberdade de expressão, por óbvio, e os excessos que podem se tornar danosos perante à opinião pública.
A reação não tardou e o PL, por sua vez, no dia 19/07, publicou um conteúdo similar, simulando, dessa vez, Lula enquanto um boneco sentado no colo de um terrorista, reproduzindo falas reais ditas pelo atual Presidente.
Antes disso, ainda, no dia 12/07, o PL fez outro conteúdo com entrevistas de pessoas geradas por IA, supostamente prestando depoimentos de que eram “viciadas” no PT e reconhecendo que era uma espécie de “droga” que os impedia de ver a realidade.
Com a diferença de que ambos trouxeram informação de que foram feitos com IA e não foram impulsionados. O alcance das publicações, notadamente, bem menores do que a veiculada pelo PT, somando em conjunto cerca de 472 mil visualizações.
Há ainda algo bastante curioso nessa história: contra o conteúdo do dia 12/07 veiculado pelo PL, o PT ingressou com uma ação judicial alegando se tratar de divulgação de fake news por meio, vejam as senhoras e os senhores, de IA_! Ora, como eu costumo sempre dizer: pau que dá em Chico, dá em Francisco! Enfim, a hipocrisia.
De qualquer forma, voltando ao cerne da questão aqui trazida: cabe a nós, especialistas, players da política, eleitores e eleitoras e sociedade civil num geral, sabermos se esse bang bang virtual continuará à moda velho oeste e sem qualquer regulamentação. Afinal, a conta, ao fim e ao cabo, literalmente é pública!
Por ora, sigamos acompanhando as emoções e as reviravoltas desse vale tudo na propaganda partidária!