Você contrataria uma escola de economia para cuidar das suas redes sociais? A Câmara dos Deputados fez isso

A contratação da Fundação Getúlio Vargas pela Câmara dos Deputados para cuidar de sua comunicação digital teria sido uma escolha fora do tom?

Na coluna Fora do Tom, Fred Perillo questiona a contratação da FGV para projeto de modernização das redes sociais da Câmara dos Deputados

Vamos aos fatos, para quem não está por dentro do enrosco: não sem alguma surpresa, soube pela imprensa que a Câmara fechou um contrato de consultoria com a FGV, no início deste mês, no valor de aproximadamente R$ 4,9 milhões. Detalhe não tão pequeno: foi sem licitação.

O objetivo declarado foi “modernizar a comunicação digital e a presença da Casa nas redes sociais”, segundo informações do site Metrópoles.

Pelo que apurei, a justificativa da Presidência foi a necessidade de melhorar a imagem institucional da Câmara após sucessivos desgastes, como a crise em torno do IOF e a polêmica aprovação da chamada PEC da Blindagem.

Longe de mim desconfiar da lisura do presidente da Câmara, deputado Hugo Motta. Ele parece ser um político acima de qualquer suspeita, ainda que visivelmente deslocado na função que ocupa. Mas isso é uma questão política, não gerencial.

Da mesma forma, não tenho dúvidas de que a Fundação Getúlio Vargas é uma instituição séria e tradicional de ensino e pesquisa. Embora, nos últimos anos, tenha acumulado episódios de contratações polêmicas e tenha sido alvo de investigações e processos relacionados a contratações diretas com órgãos públicos, o que levanta questionamentos sobre transparência e legalidade. Mas essa é outra história.

O debate aqui é direto: a FGV era realmente a melhor escolha para modernizar a presença digital da Câmara dos Deputados?

Segundo informações públicas, o contrato prevê que a Fundação forneça consultoria, capacitação e relatórios técnicos, divididos em quatro módulos principais, englobando desde governança da comunicação e planejamento de conteúdo até produção audiovisual.

Ocorre que a FGV é notoriamente conhecida por suas atuações nas áreas de economia, administração e políticas públicas. Não é, portanto, uma agência de marketing digital. E foi exatamente isso que me chamou a atenção neste projeto voltado às redes sociais.

Intrigado e com algum tempo disponível, resolvi pesquisar o assunto e descobri que, apesar de não ser sua especialidade, a FGV possui núcleos dedicados à comunicação digital e análise de redes.

Por exemplo, criou recentemente sua Escola de Comunicação, Mídia e Informação (FGV ECMI), que abriga o DAPP Lab, um laboratório especializado em monitoramento e análise de redes sociais. Ponto para ela nesse episódio.

Ela também dispõe de notório conhecimento técnico em ciência de dados, ainda que mais voltado à pesquisa e a políticas públicas, e não à gestão de mídias sociais como faria uma agência de publicidade tradicional.

Apesar desse aparente lastro para a contratação, não encontrei registros públicos de que a FGV tenha conduzido projetos semelhantes a este. Ou seja, modernização da estratégia de redes sociais de um órgão legislativo.

A Fundação é mais associada a consultorias em planejamento governamental, educação executiva, concursos públicos e similares.

Essa contratação parece ser um caso inédito na atuação da Fundação neste campo específico.

Contudo, sejamos justos: a FGV possui um histórico robusto na prestação de consultorias a entes governamentais em diversas áreas, aproveitando seu quadro técnico e sua reputação institucional.

Em muitos desses casos, como já foi dito, ela é escolhida por contratação direta (sem licitação tradicional), por ser reconhecida como entidade de notório saber e excelência técnica.

Resumindo a ópera: embora não seja uma agência de marketing tradicional, a FGV atua, por meio da divisão FGV Projetos e outros núcleos, em consultorias públicas, aplicando conhecimento técnico em gestão, análise de dados e capacitação institucional.

A Câmara pode alegar que a escolha da FGV se deu por seu enfoque mais estratégico e acadêmico, e não apenas por sua capacidade operacional em redes.

Mesmo assim, soa estranho. Principalmente porque existem no mercado empresas especializadas exclusivamente em mídias sociais e imagem digital, com perfil técnico muito distinto do acadêmico.

Ou seja, este contrato representa uma novidade fora do eixo comum de atuação da FGV.

Há certas relações entre órgãos públicos e prestadores de serviço que, ainda que legais, levantam dúvidas morais.

A bem da verdade, nem sei exatamente por que estou escrevendo sobre isso, fugindo dos habituais assuntos desta coluna. Mas, como mencionei lá no início dessas mal traçadas linhas, essa história me parece fora do tom.

Existem outras empresas e entidades mais experientes e preparadas para prestar esse tipo de serviço de gestão de imagem e redes sociais em um órgão público.

Players com foco específico em comunicação digital pública, que provavelmente estariam muito mais aptos a conduzir um trabalho de reformulação das redes da Câmara.

Empresas que combinam expertise em marketing digital, análise de dados e relações públicas, ferecendo desde o planejamento estratégico até a execução de campanhas e a gestão de comunidades online.

A opção pela FGV, em vez de uma dessas empresas dedicadas, é o que chamou a atenção. Calma lá, ninguém está falando aqui em desconfiança, viu?

Até porque acredito piamente na lisura dos políticos e também na trajetória da FGV, a despeito das investigações que a envolvem.

Resta-me apenas acreditar que a escolha tenha se dado mesmo pela busca de um enfoque mais institucional e técnico.

Agora é esperar os próximos capítulos.

E torcer para ver, em breve, os resultados dessa parceria: tanto na imagem da Câmara quanto no salto qualitativo do seu conteúdo digital. Que, sejamos sinceros, hoje em dia está bem mediano.

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