31.3.1964. Rememorar, sempre. Para jamais repetir a barbárie. Um ato necessário, não inocente, com muitos ruídos na comunicação histórica. Um ano após a tentativa de golpe de 8.1.23 e no ano em que outro golpe se consumou há sessenta anos, vale a pena uma rápida reflexão.
A barbárie é um camaleão perigoso nas mutações armadilhosas em nome da liberdade e da igualdade. O século XX parecia um ser o limite para o terror. Afinal, o fascismo e o comunismo morreram enquanto fenômenos totalitários. Será?
E eis que estamos diante dos horrores de uma nova guerra em pleno século XXI. Mas basta relembrar seletivamente? Não há riscos gigantescos nessa memória caolha ao ampliar esquecimentos na exata medida em que alimenta maniqueísmos? E dessa maneira, reduzindo as possibilidades de resistência a todas as pestes e ovos da serpente minando a vida? Sobre aquele fatídico 31 de março de 1964, algumas observações que servirão para situar o janeiro de 2023. Importante ver os contextos reais e imaginários.
Contextos? Muro de Berlim (1961). Guerra Fria. URSS “exportando guerrilha” e nossos partidos comunistas – mundo afora, alinhados ao Comitê Central de Moscou ou a outros timoreiros da grande revolução. Um detalhe sem importância? Não mesmo. Há muito mais “detalhes” nesse xadrez das bestas.
A revolução Cubana (1959). Bahia dos porcos (1961). Envio de soldados cubanos a vários países africanos (do Congo em 1965 até Angola, em 1975). Guevara saindo do Congo para morrer na Bolívia, em 1967. No Brasil os partidos comunistas seguiam a críticos e um tanto cegos, mesmo depois da denúncia dos crimes de Stálin por Kruschev, em 1956. OPCB sempre manteve esse alinhamento com o Kremlin, mesmo após a ruptura com Stálin. O PC do B seguia a Albânia de Ever Roxa, um gangster. Na China Mao Tse Tung inaugurava a Revolução cultural (1965/1975) buscando purgar os restos de elementos capitalistas e tradicionais e impor o seu pensamento.
Do outro lado temos os EUA com sua “pax economica” a fórceps, planejando e executando golpes de estados em todo o “terceiro mundo”, em nome dos valores ocidentais e da democracia liberal. Filhos das classes médias de países dependentes que não puderam fazer intercâmbio nos EUA (Lyons, Rotary, entre outros) sentiam-se fora de um indiscreto e glamoroso clube.
Militares brasileiros se acotovelavam para ter uma formação de elite em West Point (EUA) depois de seguirem cursos Adesg e ESG. Mísseis russos instalados em Cuba (1961). Advinhem em qual direção?
EUA e aliados causavam frisson nas elites como países “desenvolvidos”. Época da retórica do “mundo livre” versus o outro… o dos comunistas. Imaginem o que as propagandas mundial e interna capitalizavam em milhões de brasileiros. “Brasil ame-o ou deixe-o” era o slogan preferido das classes médias mais abastadas. Situação parecida com o nosso dilema de hoje na disputa entre EUA/China dissimulada na guerra Ucrânia/Rússia. Temos ou teremos que optar, não importa o desfecho do conflito. Optar não entre o bem e o mal, mas pelo menos pior. Escolha de Sofia. E em termos de mercado o Brasil sabe que não está em condições de ideologizar, mas de trocar e acumular com o. Maior número de países.
O capital nós conhecemos. Os capitalismos disputam na guerra atual a hegemonia em tempos de um gigante decadente e sem lastro físico para sua moeda e outro gigante representando a ascensão de um capitalismo de estado socialista.
Do socialismo real não conhecíamos tudo, mas o suficiente para extrair uma legitimação do terror. Afinal, Soljenitisin sofrera na pele a escravidão na Sibéria e já divulgava aos poucos o inferno dos campos de concentração antes de publicar Arquipélago Gulág (1973). E o stalinismo já era sinônimo de totalitarismo.
Daí a pequena burguesia Latina se insurgir, romanticamente, a lá Régis Debrais, em armas contra os milicos. Afora o Araguaia, da guerrila rural, todas as tendências e facções “revolucionarias” eram urbanas, e sem base social alguma. O subjetivismo dialético foi atropelado pelo verde oliva facilmente. Não se entra em jaula de leão sem ser arranhado.
É a minha geração. Com sofrimento, dezenas de amigos destruídos nessa loucura voluntarista. Mortos, torturados, desaparecidos, sequelados. O comemorar almejado pelos reacionários do Círculo Militar deveria ser um novo trazer à memória, sem festejos, o papel constitucional das Forças Armadas. Ajudaria muito a perceber a política internacional e as armadilhas de um anticomunismo primário e contrafático.
A “Comissão da Verdade” sempre me soou, e tenho amigos que nela participam, como não de todo liberta dos cacoetes stalinistas. Estive lá no governo Lula, em uma de suas sessões, a convite. Um festival passional um tanto revanchista e de avanços institucionais questionáveis. Pacificar seria o objetivo. Lula a propósito do 8 de janeiro de 2023 esboça um equivocado punitivismo contra terroristas.
No Brasil não seguimos outros modelos de acerto de contas históricos, como o de Mandela na África do Sul, não punitivos, de perdão em troca de registros do que de fato aconteceu. As Forças Armadas são muito importantes desde a fundação da República (sem juízos de valor sobre o golpe de estado de 1889 e outras interferências anti-republicanas), integrando a tecitura social em vários níveis.
Aqui os militares tinham que receber o carimbo nacional de fascistas, e os outros, de bons meninos com a boa ética e justa causa histórica nas mãos. Lamarca, Mariguela e outros líderes heróicos ajudaram a legitimar e a prolongar a ditadura e a violência estatal e paramilitar, prorrogando o tempo da exceção, de sofrimento e. morte.
Sem maniqueísmo, por favor. Hoje a esquerda entraria numa luta armada em defesa do tio Sam salvador ou do bondoso Putin? É assim que militares e lopetistas disputam o 31 de março, 60 anos após. Acirrando ressentimentos e alimentando ideologias putrefatas? Pior, fomentando falsa polarizações. Algo me lembra aqueles roqueiros sobreviventes às drogas, octagenários sem noção, cantando as mesmas canções de um protesto cada vez mais vazio desprovido de crítica social. É o que dizer do estúpido elogios aos vícios que ceifam a via de milhares de jovens? O vazio de linguagem que acompanha a regressão é geral. E de todos.
O mundo já está numa guerra mundial. O Estado de Israel massacrando civis em Gaza. Não se enganem. A questão palestina é a da Ucrânia somente prenunciam o mal-estar global. Se chegaremos a um conflito nuclear, não sabemos. A confusão é parte da paralisia no discernimento típica de situações de medo e insegurança. A Rússia seduz parcelas de certa esquerda e de certa direita, e o mesmo ocorre com relação aos EUA. Ambos parecem desconsiderar o que subjaz à disputa: os poderes mercantis e geopolíticos. E parecem desconhecer que Biden ou Trump empurrem a direita ainda mais para a extrema direita. Democratas e Conservadores somente divergem em assuntos internos. Em termos externos acaba prevalecendo a ditadura dos seus interesses.
A questão do belicismo intrínseco aos EUA e vassalos na Ucrânia tendo à frente o fantoche Zelenski, poderia ser aprofundado nos seminários de militares e de lulopetistas, mas também entre bolsonaristas abertos a discutir história e cenários fora de modelos da Guerra fria. O mesmo para o problema profundo da Palestina, cuja solução passará por uma superação das acusações recíprocas de terrorismo e filtragens de interesses que mantém a contabilidade da guerra.
Essa ciência política não se confunde com politização excessiva nos termos de ideologias contra pistas insuperáveis e evidentes, mas na ampliação da capacidade de discernimento sobre eventos históricos em tempos metamórficos. Afastando-se, portanto, da bobagem de festejar ou execrar golpes ou tentativas de golpes, simplesmente, em busca de novas inquisições que mais alimentam um ódio que ajudam a pacificar nosso país.
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil