Encarcerados de si mesmos: a luta psiquiátrica pela recuperação no Hospital de Custódia de Florianópolis

Por Ana Schoeller e Diorgenes Pandini

O cárcere

Era uma quinta-feira início da tarde quando entramos no Hospital de Custódia de Santa Catarina, localizado no bairro Agronômica, em Florianópolis. Primeiro, uma pequena equipe nos recebeu. Lá estava a secretária-adjunta da Secretaria de Estado da Administração Prisional e Socioeducativa, Joana Mahfuz Vicini, acompanhada por Klaus da Silva, coordenador de atividades laboratoriais, e Malu Rafaela Ebele, da coordenação de ensino e promoção social.

Dadas as devidas apresentações em uma conversa inicial, fomos conhecer o espaço que hoje abriga 41 internos. Em um primeiro momento, o impacto. Um portão grande e dois homens separados dos demais. Acima dos seus nomes uma fita vermelha dizia: “ideação suicida” – o termo clínico designado a quem pensa em tirar a própria vida. Os policiais explicaram então que aqueles dois homens eram monitorados 24 horas por dia com uma câmera em suas celas.

Olhei para uma delas. Um pequeno colchão, sem lençóis para evitar enforcamento, uma pequena caneca de tom branco, uma escova de dentes e um dicionário.

O homem que estava à minha frente tinha matado e comido a carne de outro homem. Quando foi preso, envolvia o coração de sua vítima entre duas folhas de alface.

Com apenas 22 anos lá estava ele. Com olhar distante e sem vida: encarcerado de si mesmo.

À primeira impressão, uma bíblia. O olhar mais atento revelou um dicionário.

Outra história que conheci foi a de J.R.*. Ele havia estuprado a própria mãe no dia das mães. Ao contrário dos outros internos, ele optava por não participar de confraternizações como festas juninas, almoço de natal, ou dia da família.

“Me segurem. Se eu sair daqui irei fazer novamente. Eu não consigo me conter com crianças e mulheres. Não consigo me conter”, disse o interno agarrado ao braço de um dos policiais penais que trabalha no local.

Nos dias em que outros internos se reúnem, ele é levado e escoltado por outros agentes. Juntos, tentam afastá-los das mulheres que trabalham na limpeza, na enfermagem, na medicina e em tantas outras atribuições dentro do local.

A carta

Uma delas já recebeu cartas de outro interno. Na carta, uma cruz. Ao lado dela o seu nome e uma data.

Ao entrar no quarto deste interno o mesmo disse para a então enfermeira: “este é o dia de sua morte, que só dependerá de como você irá se comportar”.

A mulher, ainda assustada, andou pelos corredores do Hospital de Custódia de um dia gelado em Florianópolis. A respiração arfada foi de encontro ao toque acolhedor de uma colega. Ela sentiu medo. Se sentiu vulnerável e sozinha, ainda que não estivesse. Isto porque todos os atendimentos no Hospital de Custódia são acompanhados de policiais penais armados e treinados para proteger os profissionais de saúde que atendem os pacientes.

Todos os internos do Hospital de Custódia são homens. Apesar de existirem crimes cometidos por mulheres em sofrimento psíquico em Santa Catarina, o Estado não possui lugares específicos para elas. E com a Resolução 487/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), é quase impossível imaginar a abertura de mais um destes locais. A resolução determina o fechamento dos hospitais de custódia no Brasil. O de Santa Catarina está livre do fechamento, por enquanto, por decisão liminar do Tribunal de Justiça.

A esperança

Entre tantos relatos ouvidos na visita no Hospital de Custódia, um profissional do local me conta que prefere não pesquisar quais foram os crimes que cada um deles cometeu e que, por serem considerados inimputáveis pela Justiça, foram mandados para o tratamento no Hospital.

“Eu tento não saber. Mesmo trabalhando aqui por tantos anos o meu coração não se endureceu. Eu sei, de verdade, que é possível que alguns deles saiam daqui melhores. A gente já recebeu alguns com problemas muito graves e que realmente melhoraram aqui dentro”, conta.

Klaus da Silva, o coordenador de atividades laboratoriais do Hospital me diz que não dá para generalizar.

“Sabemos que cada um tem o seu tempo aqui dentro. Não podemos generalizar. Tem gente que, de fato, melhora aqui. Temos suporte para essa melhora, entende?”, me questiona.

A jornada

Malu Rafaela Ebele, da coordenação de ensino e promoção social, conta que ao contrário do senso comum o programa prevê que os internos saiam do hospital em algum momento. Isto, claro, se a Justiça liberar e se houver alta dada pelo psiquiatra da instituição.

“A gente têm programas para que aos poucos eles sejam desinstitucionalizados. Isto, claro, seguindo protocolos. Vamos aos poucos. Temos, por exemplo, o programa em que eles trabalham aqui produzindo alfaces hidropônicas que são vendidas fora do hospital. Assim, eles ganham um salário mínimo e podem comprar coisas para si mesmos para quando forem liberados. Mas, eles fazem estas saídas acompanhados dos agentes”, conta.

Alfaces hidropônicas plantadas pelos internos.

A secretária-adjunta, Joana Mahfuz Vicini, de Administração Prisional e Socioeducativa. ajuda a desenvolver melhor esta ideia.

“Precisamos lembrar que quando eles recebem alta, esta alta é condicional. Eles só podem sair se frequentarem os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) das suas cidades, pois é lá onde os médicos fazem relatórios e encaminham para a Justiça Catarinense que define se eles ‘estão indo bem’ ou não”, conta.

O lugar

O chão branco contrastava com a parede pintada de cinza até a metade. No pátio comum, internos conversam. Outros pegam sol, e nós, captamos este momento.

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O cárcere do corpo e da mente.

É desolador imaginar o que é estar no cérebro de alguém que cometeu tamanhos crimes sem, segundo a própria Justiça e medicina, ter consciência total de seus atos.

Ali estavam pessoas que assassinaram, homens que estupraram. Pessoas que deixaram de lado sua humanidade quase que por toda uma vida e que agora lutam pela sobrevivência do humano que resta. Ali, no Hospital de Custódia, é como se eles não estivessem internados apenas pelo bem da sociedade, mas como se estivessem encarcerados de si mesmos.

A ressocialização

De acordo com Henrique Fogaça, médico psiquiatra e diretor-tesoureiro da Associação Catarinense de Psiquiatria (ACP), a taxa de ressocialização após internação psiquiátrica no Hospital de Custódia é alta.

“Com o tratamento regular e contínuo, há uma diminuição da chance de recaída da doença em novos comportamento violentos da ordem de 80 a 90%. Esses índices são altíssimos, se comparados a outros tratamentos de sucesso em outras áreas da Medicina. Naturalmente, não há garantia de 100%, claro, como não há também em uma pessoa que tenha sofrido um infarto ou um acidente vascular cerebral (AVC)”, compara o médico.

O que ele e outros médicos questionados nos contaram é que a resolução do CNJ que quer fechar os hospitais psiquiátricos de custódia simplifica uma questão muito complexa, justamente por não levar em conta esta alta taxa e o trabalho realizado pelos profissionais de saúde junto aos internos.

“É um absurdo pensarmos que o tratamento hoje oferecido pelos Hospitais de Custódia Brasil afora possa ser plenamente substituídos por ferramentas outras, que não estão desenhadas, dimensionadas e preparadas para receber essa população específica. Levar essa população para CAPS, Hospitais Gerais e mesmo Hospitais Psiquiátricos, será um enorme retrocesso, um desserviço aos pacientes de Custódia, seus familiares, e aos demais pacientes que frequentam os serviços citados, e um risco aos profissionais e pacientes que lá estão, bem como à sociedade como um todo, que passará a ficar exposta ao risco de recaídas sintomáticas dos pacientes que já tiveram histórico criminal”, avalia o médico psiquiatra Henrique Fogaça.

Ele se soma ao relato frequente de outros profissionais de saúde que atuam ou já atuaram no Hospital de Custódia: não há estrutura pública, hoje, para receber estes pacientes para tratamento no Sistema Único de Saúde (SUS).

A vulnerabilidade

Um dos profissionais de saúde do Hospital de Custódia de Florianópolis, que preferiu não se identificar, me puxou pelo braço na saída da minha visita. Olhando fixamente em meus olhos ele me disse:

“Você lembra daquele homem que no passado foi preso por ‘passar a mão’ em uma adolescente no Ticen? Ele está aqui. Tenho medo que ele saia com essa resolução. Não temo por mim, e sim pelos mais vulneráveis como mulheres, crianças e adolescentes”, diz enquanto me olha com olhar quase que desesperado.

A história em questão se passou no dia 8 de março de 2020 no Terminal de Integração do Centro, em Florianópolis. De acordo com a vítima, uma menina de 16 anos, o homem colocou as mãos por baixo do seu vestido e a agarrou. Na época, o homem tinha 22 anos.

O homem que me deu esta declaração me lembra que passamos ao lado deste interno. Na cela ao lado, estava um interno citado em outra reportagem do upiara.net: o Esquartejador de Videira. Responsável por matar e serrar duas mulheres, ele nos olha com olhar distante e pede: “tirem fotos das minhas mãos?”.

O registro das mãos que causaram dor.

As mesmas mãos que ceifaram a vida das mulheres na cidade do Meio Oeste catarinense agora estavam registradas pela câmera.

Saímos de lá. Sem uma solução simples. Descobri no meio do caminho que é um consenso. Não há soluções fáceis para resolver um problema tão complexo.

De acordo com o psiquiatra Henrique Fogaça, o fechamento dos Hospitais de Custódia pode ser perigoso para os pacientes, para a sociedade e para todo o país.

A ida ao Hospital de Custódia de Santa Catarina mostra a complexa teia de realidades perturbadoras e humanizadoras, colocando em evidência a linha tênue entre a necessidade de segurança pública e o tratamento humanitário de indivíduos com distúrbios psiquiátricos severos.

Enquanto o impacto inicial pode provocar horror, o trabalho dedicado dos profissionais de saúde e agentes penitenciários demonstra um compromisso com a recuperação e reintegração desses internos. Contudo, a iminente Resolução 487/2023 do CNJ, que prevê o fechamento desses hospitais, levanta preocupações profundas sobre o futuro desses pacientes e da sociedade.

É preciso buscar uma saída.

O olhar


Textos: Ana Schoeller
Fotos: Diórgenes Pandini

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