O STF e o (velho) truque do inimigo externo. Por Eduardo de Mello e Souza

Eduardo de Mello e Souza escreve artigo sobre o conceito do “inimigo externo”, popularizado por George Orwell em suas obras A Revolução dos Bichos e 1984. O autor explora como governos autoritários utilizam esse inimigo fictício para desviar a atenção das críticas internas, mobilizando a população em torno de uma ameaça inexistente.

Eric Blair, mais conhecido pelo seu pseudônimo George Orwell, aperfeiçoou um conceito antigo e comum às suas duas principais obras (A Revolução dos Bichos e 1984): o tal do inimigo externo. Não se tratava ali, por óbvio, de um inimigo real, mas de uma construção política por um governo de viés autoritário, destinada à manipulação do público interno sempre que o regime se via questionado.

A ideia era tão simples quanto brilhante. Afinal, toda forma de questionamento político e todas as divergências que comprometem um governo empalidecem quando uma ameaça externa (ainda que criada artificialmente) compromete a existência do país. O objetivo é mobilizar a população através da mídia estatal, induzindo a união de todos para enfrentar um mal maior.

O sintoma mais aparente desse discurso advém do uso de expressões batidas como “soberania nacional”, “respeito à legalidade”, “intromissão externa” e a mais comum “ataque dos mercantilistas estrangeiros”. É uma situação tragicômica. Não existe inimigo, não existe ameaça concreta, mas a massificação midiática se encarrega de incutir uma crença generalizada de um risco comum a todos os cidadãos.

Há pouco mais de dez dias, o STF estava sob o cerco da suspeição. O vazamento de conversas entre o ministro Alexandre de Moraes, que preside o chamado “inquérito do fim do mundo” (nº 4781), e um assessor, dando conta do direcionamento de investigações e busca de provas, gerou uma sombra de parcialidade no trato daquele processo. A situação estava insustentável, face à memória recente da Lava Jato fulminada pela Vaza Jato.

Frases de efeito usadas por Ministros do STF, à época, para tornar suspeito o então Juiz Sergio Moro voltaram à tona com inevitável toque irônico: “não se pode combater o crime cometendo outro crime”, disse, então, o Min. Gilmar Mendes ao anular a Lava Jato. E a roda do destino, essa debochada, se encarregou de tornar a frase mais atual do que nunca, deixando uma leve impressão de que o mundo não gira, capota.

O temor maior nem era em relação ao que já havia sido divulgado, mas ao que ainda estaria por vir. O Min. Alexandre de Moraes, acuado, mandou apreender o celular do assessor. O STF se fechou em copas e manteve seu tradicional espírito de corpo, apoiando, pelo menos naquele momento, seu membro mais popular.

Eis que, no momento mais delicado da história recente do STF, surge a providencial figura de Elon Musk. Bilionário, dono da Tesla, da Space X e do ex-Twitter (atual X), cara de nerd, jeito de vilão de filmes de 007, ele preenche à risca o perfil do inimigo externo ideal.

Ele não sabe ainda, mas pode ter salvado o STF que tanto quer combater.

Duas ou três bravatas ironizando a condição do Min. Alexandre de Moraes foram suficientes para desencadear uma das maiores mobilizações de provimentos judiciais para calar o bilionário fanfarrão. Não será exagero dizer que o STF foi às últimas consequências, tirando do ar a rede social de maior espectro e abrangência do mundo, aplicando multas a quem quer que ousasse acessar o “X”, e apreendendo o dinheiro até de empresas coligadas. Mero detalhe: ainda é um inquérito sigiloso. Não existe processo. E ninguém sabe os fundamentos de qualquer decisão.

Foi o suficiente para virar o jogo. A mídia acolheu a campanha ufanista do “Brasil é nosso”, apagou o passado recente, e caiu no discurso fácil da defesa da soberania: afinal, as leis precisam ser obedecidas. Mas quais leis? Essa seletividade espanta, quando se está diante de um inquérito que perdura inconclusivo por mais de 5 anos (a lei fala em 30 dias); sem a iniciativa do Ministério Público (a quem a lei atribui a iniciativa investigatória); por distribuição direcionada ao Min. Alexandre (a lei fala em sorteio de relator), dentre diversas outras leis providencialmente esquecidas, mas cuja desobediência anularia qualquer outro inquérito, menos o 4781.

Exceto por alguns indícios muito leves de fissuras internas (ressalvas do Min. Fux na 1ª Turma; e a remessa ao plenário, pelo Min. Nunes Marques, das ações do NOVO e da OAB), a tendência será a de manter tudo como está. Mas os debates deixarão claro que o inimigo do STF não é externo, é interno: o próprio inquérito, que se tornou maior que o Tribunal.

Elon Musk salvou o STF, pelo menos por enquanto…


Eduardo de Mello e Souza é advogado, Vice-
Presidente da OAB/SC, Professor UFSC.

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