Os livros do bem: as causas que se convertem em publicações e acolhimentos

Coluna Literária trata da publicação de livros engajados, dedicados às causas humanitárias e sem fins lucrativos

O drama do câncer nas crianças, a provação dos refugiados ou os desastres climáticos contados em linguagem infantil – os temas variam, mas a publicação de livros engajados, dedicados às causas humanitárias e sem fins lucrativos se multiplicam.

Essas iniciativas trazem duas boas notícias: cada vez mais percebemos a adesão às causas que promovem o bem coletivo ou individual (e nunca precisamos tanto disso!) e o livro físico, em especial, se reafirma como mídia – apesar dos avanços céleres e irreversíveis da sociedade digital.

A catarinense Bruna Kadletz obteve repercussão internacional quando lançou “Minha terra mora em mim”, em 2019, trazendo à luz o drama dos refugiados de guerra ou de hostilidades políticas pelo mundo, e o relato de quem atravessou rotas de fugas de alto risco para chegar a um destino supostamente seguro. Outras causas são familiares, mas se conectam com casos similares, milhares deles, Brasil afora.

A história do corpinho

Em 2021, Manuela, de apenas cinco anos e uma das três filhas do casal Sabrina Choli e Daniel, foi diagnosticada com leucemia. Começava aí uma trilha de dor e incertezas, entre elas como explicar o que estava acontecendo para a própria enferma e seus irmãozinhos Júlia e Pedro. Sabrina e o trio de filhos produziram “A história do Corpinho”, transformando em personagens infantis as células cancerosas, o sangue, a quimioterapia, as plaquetas e é claro, o próprio corpinho da Manu.

O texto foi da mamãe e os desenhos das crianças, nos quais também relataram o cuidado e os carinhos recebidos da equipe do Hospital Infantil Joana de Gusmão, em Floripa. Sabrina, carioca radicada na capital catarinense, vende a obra apenas para financiar a reimpressão e seguir distribuindo para hospitais e casas de apoio Brasil afora. “A história do Corpinho” foi editada sem custos pelo artista Luciano Martins e pela Carbo Editora, e teve o apoio da Gráfica Impressul.

O menino do boné

Com proposta similar, a experiente psicóloga Anie Juçara Fabris Casagrande, de Criciúma (SC), produziu “O menino do boné”, uma autopublicação, em 2022. Com 64 anos e 39 de psicologia, Anie é uma voluntária permanentes de muitas causas sociais. Em seu trabalho, o livro é uma ferramenta recorrente.

“O paciente visualiza, toca, lê, escuta e interage com o livro. Meu consultório é repleto deles”, conta. O impacto do câncer infantil sempre a perturbava: “a criança passa a conviver com o desafio de restrições sociais, alimentares, dores e angústias. Sentia falta de um material para explicar isso”.

Em um grupo de peregrinas que frequenta, Anie conheceu a jornalista e editora paulista Silvia Prevideli, que materializou a historinha construída pela autora, quase que em parceria com muitas das crianças que atendia. As ilustrações ficaram a cargo de Murilo Orefice – e o resultado foi uma obra de refinado esmero estético, com um texto leve e envolvente.

Já chegou a 60 instituições do país – inclusive o prestigiado Hospital Sara Kubitschek de Oliveira, em Brasília. A psicóloga financiou todo o processo e Silvia e Murilo também foram voluntários. A receita das vendas contribui para novos projetos similares.

“A próxima publicação será sobre como falar de morte para crianças”, anuncia.

E a chuva…

Entre abril e junho deste ano a chuva em grande parte do Rio Grande do Sul provocou a maior catástrofe climática da história daquele estado, deixando 173 mortos e quase 450 mil desabrigados. Restam 38 desaparecidos. Empilhados nos abrigos improvisados, as crianças eram a face mais perversa desse drama humanitário. Foi a vez da psicóloga Sabrina Fuhr, de 38 anos, moradora de Dois Irmãos (52 km de Porto Alegre) se mobilizar e produzir o livreto “E a chuva…”.

“Fiquei muito preocupada com a fragilidade dos pais e a dificuldade em explicar o que estava acontecendo às crianças, quando sairiam dali e retomariam a vida normal, que em muitos casos já era duríssima”, lembra ela. “Para compensar essa angústia e o tempo ocioso nos abrigos, pensei em meu trabalho, onde os livros são muito úteis como ferramentas para iniciar o acolhimento, para estabelecer um vínculo, para quebrar o gelo e para iniciar as conversas”, acrescenta.

Escrito e ilustrado em apenas uma tarde por Sabrina, “E a chuva…” foi um sucesso imediato, também graças ao alcance das redes sociais.

“Compartilhei com um grupo de psicólogos no WhatsApp em busca de apoio para imprimir algumas cópias e quando percebi ele já havia sido adotado e impresso por inúmeras pessoas, gente pedindo que a obra fosse postada no Instagram, foi se expandindo sem limites. Fiquei impressionada e muito feliz com a repercussão”, conta.

O principal motivo do sucesso do livreto, contudo, foi o momento certo de seu lançamento. Além das ilustrações, muito conectadas com a realidade, mas ainda assim leves e agradáveis, o livreto de 14 páginas tem um espaço para os pequenos colorirem e entenderem os esforços dos voluntários e profissionais de resgate e acolhimento aos atingidos pelas cheias.

“Recebi o livrinho no auge da tragédia, e me ocorreu um sentimento que misturou tristeza e emoção, pois mesmo diante do que aquelas famílias estavam passando, a Sabrina Fuhr conseguiu tratar o assunto de forma tão linda, criativa, sensível e generosa, tentando amenizar e tornando lúdico, para que as crianças procurassem compreender um pouco do que enfrentavam”, confirma Angélica Caminha, supervisora de educação continuada no Conselho Regional de Contabilidade/RS e moradora de Porto Alegre.

Seu filho Arthur Caminha Rigon, estudante de arquitetura, se incorporou ao esforço e em apenas duas horas após haver recebido o livreto, mobilizou centenas de pessoas para levantar recursos e uma gráfica parceira, montar kits com lápis e giz de cores para acompanhar as doações e fazer as entregas. Nos dias que se sucederam, as adesões se multiplicaram e a obra chegou aos abrigos de dezenas de cidades arrasadas pelas enchentes. Sabrina Fuhr acredita que o livro pode ter chegado a 20 mil exemplares impressos, mas o alcance digital não é calculável.

Para adquirir as obras citadas e contribuir com as causas

“A história do Corpinho” no Instagram @ahistoriadocorpinho ou www.ahistoriadocorpinho.com.br

“O menino do boné” @aniejucara ou anie.casagrande@gmail.com

“E a chuva…” @sabrinafuhr


Arte em destaque: Luciano Martins.

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